A crítica ocupa um lugar central no pensamento de Michel Foucault, não como um simples instrumento de análise ou um método filosófico, mas como uma arte de não ser governado, um meio de resistência frente às diversas técnicas de poder que operam na modernidade.
Segundo Foucault, a crítica não deve ser entendida como uma técnica de argumentação ou uma ferramenta de avaliação, mas utilizada enquanto uma disposição prática, uma maneira de se relacionar com o presente, com a verdade, com as instituições e as formas de controle.
Trata-se de uma atitude de contraponto ao poder e aos discursos voltados para a condução da conduta humana, seja na escola, no trabalho, na religião, na família, no Estado ou na ciência. A crítica seria uma disposição de interrogar, deslocar e resistir a essas formas de controle.
“Desde seus primeiros escritos, a grande pergunta que domina todo o pensamento foucaultiano é, em definitivo, a seguinte: como foi possível o que é? Essa possibilidade é sempre histórica, não é a expressão de nenhuma necessidade; as coisas poderiam ter sido de outro modo e também podem ser de outro modo.”(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')
A crítica propõe uma recusa de certos modos de ser governado, colocando em questão as formas históricas de sujeição, os discursos que as justificam, os saberes que as sustentam e os efeitos de poder que produzem sobre os sujeitos.
Para Foucault, a crítica é uma forma de desassujeitamento em relação à política da verdade – o conjunto de práticas que fazem com que certas afirmações sejam aceitas como verdadeiras num determinado contexto histórico, onde o sujeito interroga os efeitos da verdade e do poder.
Essa característica da crítica opera uma forma de insubmissão, problematizando o que se apresenta como evidente, natural ou legítimo. Crítica não é o simples exercício do questionamento, mas uma prática ética e política de tornar instável aquilo que se naturalizou.
"De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir."
(Michel Foucault, em 'O uso dos prazeres')
Foucault entende a crítica como uma tarefa filosófica, colocando em questão os vínculos entre o saber, o poder e a subjetividade. Atua na fissura dos saberes estabelecidos e dos regimes de verdade, para a transformação dos modos de vida e das relações de poder.
A arqueologia analisa as camadas dos sistemas de pensamento que configuram os saberes, a genealogia investiga os efeitos de poder e as condições históricas de emergência dos discursos, para entender como certos arranjos de saber-poder se tornam aceitáveis em determinado momento.
Seus métodos não visam fundar uma nova verdade, mas desestabilizar os modos pelos quais fomos constituídos como sujeitos e tornar visíveis as configurações que estruturam o presente. A crítica, nesse sentido, é inseparável de uma ética e de uma prática de liberdade.
A noção de crítica em Foucault ultrapassa os limites tradicionais da filosofia, sendo um modo de viver e pensar, uma prática permanente de problematização. É uma arte de não ser governado, colocando em questão os modos pelos quais somos conduzidos, disciplinados e subjetivados.
"Meu papel – e este é um termo por demais pomposo – consiste em mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam; que elas tomam por verdade, por evidência, alguns temas que foram fabricados em um momento particular da história; e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. Mudar algo no espírito das pessoas: esse é o papel de um intelectual."(Michel Foucault, em 'Verdade, poder e si')
Não se trata de um saber que se supõe "verdadeiro" ou "superior", mas uma prática de cuidado de si e dos outros, pensando criticamente o mundo, o modo como pensamos e como nos tornamos quem somos, para podermos pensar diferente do que pensamos e nos tornar diferentes.
Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. In: MOTTA, Manoel Barros da; IAVELBERG, Rosa (org.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes?. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
FOUCAULT, Michel. O uso dos prazeres. História da sexualidade II. Rio de Janeiro: Graal, 2010.
FOUCAULT, Michel. Verdade, poder e si: escritos selecionados. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.