O conceito de heterotopia, segundo Michel Foucault se refere a espaços físicos e de pensamento que possuem características distintas das normas sociais e culturais estabelecidas, operando como "mundos dentro de outros mundos", que refletem e, ao mesmo tempo, perturbam os espaços estabelecidos. A ideia do espelho é uma metáfora da dualidade e da contradição paradoxal - real e irreal de projetos utópicos.
Diferente das utopias, que não existem em lugar nenhum, sendo apenas projeções imaginárias, as heterotopias existem concretamente, em condições "deslocadas" em relação ao espaço comum. Elas acontecem num duplo movimento, em ligação com a realidade e ao mesmo tempo num descolamento dela, gerando um efeito desestabilizador sobre a linguagem e a ordem do saber.
"Não se vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas. Há regiões de passagem, ruas trens metrôs; há regiões abertas de parada transitória, cafés, cinemas, prais, hotéis, e há regiões fechadas de repouso e da moradia. Ora, entre todos os lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los e purificá-los. São como que contraespaços."
(Foucault, em 'O corpo utópico, as heterotopias')
A noção de heterotopia possibilita pensar o espaço social a partir de lugares de passagem, como o hospital, o asilo, a escola, o metrô, a biblioteca; que compõem o entorno da sociedade, fazendo parte dela e também permanecendo um tanto exterior a ela. Essa perspectiva busca compreender o campo social considerando o modo como distintos espaços se relacionam e desenvolvem maneiras e concepções distintas.
Entre os exemplos de heterotopias podemos pensar nos navios, os cemitérios, os bares, as rodoviárias, os prostíbulos, as feiras, as prisões, os jardins da antiguidade, os banhos muçulmanos, etc. Não são "locais fixos", mas espaços que variam segundo a época e a cultura. Foucault descreve a heterotopia como um espaço onde se vive no interior de um conjunto de relações, como uma rede que religa pontos e que entrecruza tramas, sendo também diferente dela.
Heterotopia, portanto, corresponde a lugares e espaços que funcionam em condições não hegemônicas, como "espaços outros", ou "contra-espaços". Este conceito deriva-se da junção dos termos "hetero" (outro, diferente) e "topia" (espaço, lugar). Foucault utiliza para descrever os espaços que têm múltiplas camadas de significação ou relações a outros lugares, cuja complexidade não pode ser percebida de imediato.
"Pois bem, sonho com uma ciência - digo mesmo uma ciência - que teria por objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e, forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já se chama 'heterotopologia'."
(Foucault, em 'O corpo utópico, as heterotopias')
Para Foucault, a heterotopia por excelência é o navio, enquanto um espaço de alteridade, que não está nem aqui, nem lá, sendo simultaneamente físico e mental. As heterotopias são locais restritos, que se distinguem de seus arredores por sua função, complexidade e características de integrar múltiplos elementos, de modo que diversas culturas formaram heterotopias por toda a história da humanidade.
As heterotopias variam em funcionalidade, com o passar do tempo e segundo a cultura, podendo unir múltiplos espaços incompatíveis entre si. Podem também conectar diferentes períodos, se localizando como locais separados da sociedade e com regras limitando a entrada e saída, estabelecendo funções específicas relacionadas ao seu espaço ao redor.
Os livros de história são heterotopias temporais, pois unem o presente com o passado. Foucault articula vários tipos possíveis de heterotopia, que apresenta significações distintas. Espaços que, ao mesmo tempo, refletem e subvertem as normas sociais vigentes, que possuem uma relação especial com os demais espaços, funcionando como contrapontos ou inversões do espaço comum.
"As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as frases — aquela, menos manifesta, que autoriza "manter juntos" (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases."
(Foucault, em 'As palavras e as coisas')
Enfim, as heterotopias manifestam múltiplas camadas de significados, podendo, simultaneamente, reproduzir a ordem dominante e abrigar práticas ou sentidos que escapam a ela. Suas principais características são a capacidade de compilar diferentes tempos e configurações, possibilitando uma suspensão das normas cotidianas, por vezes operando como "espelhos críticos" do espaço social, revelando suas fissuras, contradições e complexidades.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.: Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.