Michel Foucault foi um dos filósofos que mais explorou as relações entre poder, saber e subjetividade, fazendo uma análise crítica das instituições, das práticas e dos discursos que estruturam a sociedade e configuram os sujeitos, incluindo a psicologia. Ele entendia o poder não apenas como algo que se exerce por meio da força ou coerção, mas também por meio de saberes, discursos e práticas, que configuram subjetividades e direcionam comportamentos.
De acordo com Foucault, o poder não é apenas repressivo, mas produtivo. Ele produz corpos e modos de vida por meio das técnicas disciplinares. Além disso, está presente em todas as relações sociais, operado por dispositivos que combinam saberes e práticas. Na psicologia, esses dispositivos incluem o espaço do consultório, os testes psicológicos, os diagnósticos e as intervenções clínicas, que não apenas descrevem um indivíduo, mas produzem modos de ser e estar no mundo.
Na Microfísica do Poder, Foucault argumenta que o poder opera em rede e de maneira capilar, presente em todas as relações sociais por meio de micro práticas cotidianas, e não como algo centralizado ou exclusivo de instituições específicas. Essa perspectiva é fundamental para compreender como a psicologia, enquanto saber e prática, se insere na produção e manutenção de formas de controle social, por meio de maneiras muito sutis.
A psicologia não é uma disciplina neutra nem meramente técnica, mas um campo atravessado por interesses ideológicos e relações de poder. Desde o início da psicologia moderna, no final do século XIX, seus saberes e práticas estiveram intimamente atrelados a um ideal normativo de subjetividade. Essa normatividade determina os padrões do que é considerado "normal" ou "patológico", diferenciando os sujeitos que devem ser integrados e os que precisam ser corrigidos.
"Todas as ciências, análises ou práticas com radical 'psico', têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo."
(Michel Foucault, em 'Vigiar e punir')
As influências da psiquiatria e do modelo médico tornaram a psicologia uma ciência normativa. Wilhelm Wundt (1832-1920) mediu os processos mentais e estabeleceu um modelo padronizado de funcionamento mental, distinguindo o "normal" e suas variações. Francis Galton (1822-1911) utilizou métodos estatísticos para medir diferenças individuais, criando uma hierarquia de inteligências e capacidades. Théodule Ribot (1839-1916) estabeleceu uma distinção entre estados mentais normais e patológicos.
A psicologia, de acordo com Foucault, é uma das disciplinas que trabalham em favor da normalização, determinando padrões de comportamento, pensamento e emoção considerados "normais". Na História da Loucura, ele examinou como a distinção entre sanidade e loucura foi estabelecida historicamente, servindo a uma organização social e moral. Essa controle é mantido por dispositivos como diagnósticos e testes psicológicos, que não apenas descrevem, mas também prescrevem maneiras de ser.
Normalização refere-se ao processo pelo qual certos comportamentos, práticas e modos de ser são definidos como "normais", enquanto outros são marginalizados ou patologizados. Está associada ao poder disciplinar, que opera por meio de instituições como escolas, prisões, hospitais psiquiátricos e fábricas. Funciona por meio da comparação, hierarquização e correção, estabelecendo padrões ideais de conduta e criando mecanismos para reforçar esses padrões.
Segundo Foucault, os saberes produzidos pela psicologia e pelas ciências humanas têm estabelecido o entendimento que temos sobre nós mesmos. A psicologia define quem somos, diferenciando os normais dos anormais, os saudáveis dos ansiosos, fóbicos e depressivos. Ela explica quem somos e com isso nos torna governáveis, realizando uma ortopedia da subjetividade, direcionando os "desajustados" a um "ajustamento" socialmente aceito.
"(...) a psicologia se tornou, na cultura ocidental, a verdade do homem."
(Michel Foucault, em 'História da Loucura')
Nos últimos cem anos a psicologia se tornou uma autoridade sobre a vida mental e emocional dos indivíduos, sendo usada para o governo da conduta humana em escolas, locais de trabalho, até mesmo nas famílias. Foucault entende que desde seu início a psicologia dedicou seu olhar para o anormal, pressupondo a existência de um modelo "normal" de vida, ao qual todos devem se guiar. Porém, este "normal" não é mais que uma invenção das ciências humanas.
O conceito de normalidade não é uma descoberta objetiva da ciência, mas uma construção histórica que serve para classificar, distinguir e governar os indivíduos. As práticas psiquiátricas e psicológicas estão inseridas num contexto amplo de disciplinamento social. O consultório psicológico e psiquiátrico, a escola, a prisão e as empresas operam como um dispositivo de controle, onde os indivíduos são analisados, corrigidos e adaptados a normas sociais.
Em sua obra Vigiar e Punir, Foucault descreve o poder enquanto um conjunto de técnicas que visam moldar corpos e comportamentos. A psicologia, em sua prática clínica e institucional, atua como um agente disciplinador, ensinando os indivíduos a se ajustarem a normas sociais. Suas práticas contribuem para a subjetivação, processo pelo qual os indivíduos internalizam as normas e os valores sociais, construindo assim suas identidades.
Os consultórios psicológicos, entendidos como espaços de cuidado, na realidade são campos de exercício de poder. Foucault sugere que a psicoterapia pode reforçar padrões normativos ao entender sofrimentos emocionais e diferentes modos de ser como desvios a serem corrigidos, direcionando os "desviantes" a um modelo normativo de vida. Suas pesquisas denunciam a psicologia como um campo que articula técnicas de controle e produção de subjetividades.
"(...) sob a forma de testes, de entrevistas, de interrogatórios, de consultas, o vemos retificar aparentemente os mecanismos da disciplina: a psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder saber próprio a toda disciplina."
(Michel Foucault, em 'Vigiar e Punir')
Apesar de se apresentar como uma ciência objetiva e neutra, a psicologia frequentemente mascara suas implicações ideológicas e seus efeitos disciplinares. Por meio de categorias como "transtornos mentais", "personalidade saudável" ou "comportamento adequado", a psicologia opera uma regulação dos indivíduos, adaptando-os a contextos sociais e a modelos de vida específicos, alinhados a uma certa moralidade e ideologia.
As análises de Foucault não apenas desvelam os mecanismos pelos quais a psicologia contribui para a regulação social, mas também abre caminhos para resistência e transformação. Em tempos de crescente psicologização e individualização do sofrimento, a reflexão foucaultiana se torna mais relevante, inspirando perspectivas e práticas que rompam com a normatividade e promovam a afirmação da diferença e da singularidade.
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2017.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GUARESHI; AZAMBUJA; HÜNNING (Orgs.). Foucault e a psicologia na produção de conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
SCHULTZ, Duane; SCHULTZ, Sydney. História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1992.