História da loucura e silenciamento do louco

O livro História da Loucura (1961), escrito a partir da tese de doutorado de Michel Foucault, representa um marco inaugural de sua trajetória filosófica. Não se trata apenas de uma história das teorias médicas e psiquiátricas, mas de uma arqueologia das experiências sociais, culturais e discursivas que configuraram o entendimento sobre a loucura no Ocidente.

Foucault fez uma história das percepções, sensibilidades e disposições para com a loucura e o louco, entendendo que essas categorias não correspondem a um conceito ou a uma essência universal e atemporal, mas resultam de um processo histórico, situadas num tempo e contexto específicos, envolvidos em práticas, saberes e configurações de poder.

Sua obra destaca especialmente a passagem do Renascimento à Modernidade, mostrando como a loucura deixou de ser percebida como uma experiência trágica, expressa pelas artes e filosofia, para se tornar um objeto de exclusão e controle social, se tornando uma questão do direito, e, por fim, de medicalização e tratamento pela psicologia e psiquiatria.

Este entendimento rompe a naturalização das categorias "doença mental" ou "transtorno mental", compreendendo que tal categoria é resultante de um processo histórico, atravessado diferentes campos de saber e entendimentos, inclusive por disputas entre razão e desrazão, moralidade e normalização. O entendimento do louco como "doente mental" aparece apenas no século XIX.


A loucura antes da psiquiatria

No Renascimento, o louco não era percebido como uma pessoa que necessitava de um diagnóstico e tratamento. Pelo contrário, ele ocupava uma posição ambígua e até mesmo fascinante na sociedade. Foucault destaca a imagem das naus dos loucos, barcos que circulavam pelas cidades levando os insensatos de um lugar para o outro.

Nessa época, a loucura guardava um sentido trágico - um saber diferenciado, relacionado ao mistério da existência, ainda próxima da verdade porém num certo limiar da razão. A figura simbólica da embarcação relacionava o louco com um passageiro distinto, porém livre. Foucault trata desse entendimento enquanto característico de uma experiência trágica, que contrapõe a lógica.

A partir do século XVII, entretanto, acontece a “grande internação”, onde loucos, vagabundos, libertinos, mendigos e prostitutas passaram a ser confinados num Hospital Geral. Apesar do nome, não havia nenhuma atividade médica, mas apenas uma exclusão moral e social. O louco passou a ser visto como um “desviante”, colocado junto a outros indesejados da cidade. Quem decide a internação ou sua permanência não é um médico, mas o poder monárquico, neste momento a loucura é uma questão do direito.

Somente no século XIX, com Pinel, Esquirol e a consolidação da psiquiatria, a loucura se torna um objeto de saber médico. Os asilos, com sua atmosfera de vigilância, disciplina e normatização, não libertaram o louco, mas o enquadraram numa nova ordem racional e moral. Nesse momento, nasce a noção moderna de "doença mental". A medicalização, longe de significar um “progresso”, trata-se de um refinamento das técnicas de controle.


Arqueologia do silenciamento do louco

Arqueologia é um método elaborado e utilizado por Foucault que não busca uma origem "pura" ou "essencial" da loucura, mas descrever as condições históricas que possibilitaram os entendimentos e disposições para com a loucura, considerando seus discursos e práticas.

O que interessa, em seu estudo, não é tanto a evolução das teorias médicas sobre a loucura, mas a trama de discursos e práticas filosóficas, artísticas, jurídicas, religiosas, sociais e médicas que estruturaram os distintos entendimentos sobre a loucura, bem como a emergência da psiquiatria e psicologia modernas num período específico.

Sua arqueologia nos mostra que não há uma continuidade do conhecimento científico sobre a loucura, mas descontinuidades, rupturas, acidentes e contingências históricas. Para Foucault, a ciência não revela uma verdade, mas cria discursos com valor de verdade, relacionados às práticas sociais, que selecionam o que pode ou não ser dito em cada época.

“Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é a loucura que detém a verdade da psicologia.”
(Foucault, em 'Doença mental e psicologia')

A psicologia e a psiquiatria não descobriram a “verdade da loucura”, mas resultaram de um processo histórico de exclusão e dominação da loucura. A psicologia moderna só pôde constituir-se como ciência após o silenciamento da experiência originária da loucura e da necessidade de controlar essa experiência. O louco não pode mais falar em seu nome, quem fala sobre ele é o especialista.


Críticas à psicologia e psiquiatria

Esse livro é especialmente importante para a psicologia e a psiquiatria, pois coloca em questão suas pretensões de verdade sobre a loucura e o louco. Por meio de seus estudos, Foucault nos mostra que o conceito de “transtorno mental” não é uma revelação sobre a loucura, mas uma criação histórica recente, relacionada a dispositivos disciplinares e a demandas de normalização social.

A psicologia, ao longo dos séculos XIX e XX, se consolidou enquanto um discurso legítimo sobre a interioridade humana, assumindo a função de dizer “quem a pessoa é” e “o que deve fazer para melhorar”. Essa autoridade não é neutra, mas está vinculada a um projeto histórico de governar condutas, gerir populações e produzir subjetividades adequadas à ordem social.

O entendimento da loucura enquanto algo a ser diagnosticado e tratado pela psicologia e psiquiatria não é apenas uma expressão de cuidado, mas uma forma de poder e controle sobre corpos e condutas. A psicologia moderna se constituiu como ciência silenciando a voz do louco, transformando sua experiência singular e diferenciada em objeto de análise, diagnóstico e intervenção.


Três momentos da loucura

Foucault identifica três grandes momentos históricos no entendimento da loucura no Ocidente:
  • Indiferenciação (séculos XV e XVI): a loucura circula livremente, confundindo-se com a sabedoria, o mistério e até mesmo a uma verdade poética e trágica.
  • Segregação (séculos XVII e XVIII): os loucos são enclausurados junto a outros “desviantes”, em instituições de exclusão, marcando o início do silenciamento da loucura.
  • Medicalização (séculos XIX e XX): a loucura passa a ser entendida como “doença mental” e submetida a um tratamento, sob o domínio da psiquiatria e da psicologia.
Esse percurso revela a passagem de uma experiência trágica e aberta da loucura para uma experiência racional, médica e disciplinar.


Importância da obra

Conhecer a história da loucura é fundamental para um olhar crítico sobre a psicologia e a psiquiatria, para não naturalizar as categorias clínicas e compreender suas condições históricas de produção. Em vez de pensar a psicologia como um saber neutro, passamos a questionar sua prática social, que tanto pode cuidar quanto normalizar, ouvir ou silenciar.

Numa época onde se proliferam diagnósticos e se multiplicam as categorias de transtornos mentais, podemos pensar com Foucault para desconfiar dessas "verdades", colocando em questão se estamos diante de descobertas científicas ou de novas técnicas de controle e normalização das pessoas?

Enfim, a História da Loucura não é apenas uma história da psiquiatria, mas uma crítica radical às pretensões da razão ocidental, rompendo com a ingenuidade e a crença na psicologia e psiquiatria para compreender estes campos de saber como efeitos de relações históricas de poder.

Percebendo isso, somos desafiados a pensar outras maneiras de nos relacionar e lidar com a diferença, que não sejam por meio da medicalização, psicologização ou pela normalização, mas por uma escuta e uma prática que devolvam voz ao louco, habilitando outros modos de vida possíveis.


Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
DÍAZ, Esther. A Filosofia de Michel Foucault. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2017.
GUARESCHI; HÜNING; FERREIRA [et al.]. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

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