Diagnósticos psiquiátricos como transtornos de ansiedade, depressão, bipolaridade, autismo ou fobias são uma faca de dois gumes. Por um lado, se apresentam como categorias científicas, objetivas e neutras. Porém, em contrapartida, produzem uma narrativa sobre as pessoas diagnosticadas. Não se trata apenas de uma condição clínica, mas de uma descrição sobre a existência.
Ser diagnosticado pode gerar uma sensação de alívio, por reconhecer modos de sentir, pensar e lidar com a vida com uma explicação científica que valida aquilo que antes parecia confuso e deslocado em relação a uma "norma social". Mas também pode direcionar uma pessoa para um discurso psicológico sobre ela, dizendo o que ela "é", acoplando o diagnóstico à sua identidade, determinando suas características e limites.
Para muitas pessoas, receber um diagnóstico de TDAH, depressão ou autismo pode ser um meio de validar suas características distintas. É como se a existência, antes difusa e sem justificativa, ganhasse um contorno. O mal-estar, a diferença, a inadequação e tudo aquilo que era percebido como uma falha pessoal ou erro, passa a ter um “motivo”. Não é preguiça, é depressão; não é desorganização, mas TDAH; não é esquisitice, mas autismo.
A inscrição num vocabulário psiquiátrico possibilita um reconhecimento que legitima as peculiaridades, gerando uma sensação de pertencimento e acolhimento entre grupos que partilham do mesmo signo. Porém, o diagnóstico pode promover alívio e aprisionamento, simultaneamente. O diagnóstico não oferece apenas uma descrição de sintomas, ele emparelha o modo como uma pessoa se percebe e narra a si mesma.
Constatar “estou com ansiedade” aos poucos se transforma em “sou ansioso”. O que antes era um momento específico começa a se tornar um modo de existir. Aqui está a faca de dois gumes: ao mesmo tempo que alivia, captura. O que poderia ser uma percepção de características momentâneas, se torna identidade, delimitando horizontes e encurtando a existência, estabelecendo o que podemos e o que não podemos, o que somos e o que jamais seremos.
O diagnóstico não apenas descreve, mas também prescreve. Ele se inscreve na percepção da pessoa sobre ela mesma, transformando a linguagem cotidiana. A pessoa passa a se perceber e a se narrar segundo o roteiro que lhe foi oferecido: “sou assim porque sou depressivo”, “não consigo fazer isso, pois sou ansioso”, como se o limite estivesse definido pelo diagnóstico. O que antes parecia libertação se transforma em clausura, a hipótese vira essência.
Antes de tudo, os diagnósticos psiquiátricos são uma criação discursiva da psiquiatria moderna, sendo apenas uma leitura sobre a complexidade da existência e as questões emocionais. Eles não correspondem a uma realidade objetiva e neutra, são formulações discursivas baseadas em critérios comportamentais, emocionais e narrativos, organizados segundo uma lógica de pensamento e uma moralidade específicas. Inclusive, eles não se apoiam em marcadores biológicos (como exames laboratoriais ou de imagem).
No século XIX, a “histeria” correspondia tanto a convulsões quanto a rebeldias femininas, critérios que não são mais válidos hoje para tal diagnóstico. Até 1973, a homossexualidade era considerada doença mental no DSM, foi preciso uma mudança política para deixar de ser. O que entendemos hoje por transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) se expandiu juntamente com as demandas escolares e do trabalho por atenção contínua e produtividade. Esses exemplos revelam que os diagnósticos elaboram leituras históricas sobre a complexidade da existência.
Segundo Michel Foucault, os discursos científicos não apenas descrevem, mas produzem realidades: eles fabricam sujeitos e modos de existência, além das diferenciações entre normal e anormal. O diagnóstico, nesse sentido, é um dispositivo de poder: ele ordena, classifica, distribui os corpos em categorias previamente estabelecidas. Friedrich Nietzsche desconfiava das palavras que pretendiam fixar o fluxo da vida em identidades fixas.
O diagnóstico psiquiátrico é construído por meio de uma convenção sobre a interpretação de padrões de comportamento, sofrimento e funcionamento de uma pessoa. São classificações normativas e não descobertas de uma característica objetiva no corpo. Não existe um marcador objetivo universalmente aceito, são categorias discursivas que se transformam historicamente. Os diagnósticos médicos somáticos se diferem dos diagnósticos psiquiátricos, pois identificam lesões, inflamações ou alterações celulares que podem ser observadas independentemente da narrativa do paciente.
Além de ser uma categoria clínica, o diagnóstico funciona como uma engrenagem biopolítica. Ele configura corpos e condutas às exigências da escola, do trabalho, da família. A criança dispersa precisa ser ajustada na dinâmica da sala de aula. O adulto exausto precisa de um laudo para justificar sua improdutividade. A indústria farmacêutica transforma diagnósticos em mercados, cada nova categoria abre portas para novas prescrições e lucros.
Há algo confortável em dizer: “sou assim porque tenho TDAH”, serve como uma forma de autoaceitação e uma proteção contra o julgamento moral e social. Mas será que também não é uma forma de naturalizar a própria condição, inscrevendo o diagnóstico como característica estruturante da personalidade? Será que, ao encarar o diagnóstico como uma identidade não perdemos a chance de outras maneiras de existir e pensar a nós mesmos?
A questão não é somente o diagnóstico, mas a forma como nos relacionamos com ele, quando internalizamos uma narrativa como a única possível, impossibilitando outras maneiras de conceber nossas peculiaridades, características singulares e dinâmicas emocionais. O desafio talvez seja utilizá-lo de outra maneira. Como uma ferramenta, não como identidade. Como metáfora, não uma sentença. Como uma leitura, entre tantas outras possíveis.
Podemos, inclusive, deslocar a questão. Em vez de “o que sou?”, perguntar "como me percebo?", "como tenho me sentido quando ...?", "como gostaria de me perceber?", ou, “o que posso fazer disso?”. O diagnóstico pode nos auxiliar a entender algumas características sobre nós mesmos, mas não deve nos determinar. Pode ajudar a compreender questões que atravessamos, sentimentos e dificuldades, mas não ditar o que somos e quais são os nossos limites.
Não se trata simplesmente de aceitar ou rejeitar os diagnósticos, mas perguntar: O que eles fazem conosco? Como dizem o que somos ou o que podemos ser? De que maneira configuram a percepção que temos sobre nós mesmos? O que fazemos com eles? Podemos tomá-los como ferramentas, sem que determinem nossa identidade? Podemos usá-los para ampliar modos de vida, e não para reduzir? Quando eles nos potencializam e ampliam, e quando nos bloqueiam e reduzem?
O risco maior não é ser diagnosticado, mas ser capturado por um nome que pretende dizer o que somos. Talvez, um gesto filosófico de resistência seja este: reconhecer que somos mais complexos, amplos e múltiplos do que qualquer nomeação que nos é dada. Que estamos sempre para além das categorias clínicas, das descrições diagnósticas e dos rótulos, pois a vida excede os nomes que atribuímos a ela.
A crítica não é apenas à psiquiatria, mas à nossa tentação de nos fixarmos em identidades prontas, seguras e estáveis. É sedutor dizer “eu sou X” ou “eu sou Y”. Mas a vida sempre nos torna distinto e complexo. Encarar a existência como processo, movimento e transformação constante, talvez seja mais interessante. Questionar os diagnóstico pode ser um ponto de partida para pensarmos o quanto a existência não cabe em categorias, onde a singularidade sempre escapa, transborda e se transmuta.
Pensando no horizonte político da saúde mental, o neoliberalismo se apropria dos diagnósticos psiquiátricos. Não apenas classifica indivíduos, mas funciona como dispositivo de gestão de pessoas, organizando quem deve ser incluído ou excluído, o produtivo ou improdutivo. Ao mesmo tempo, alimenta mercados da medicalização em larga escala, terapias breves e performáticas, coaches e métodos de autogerenciamento.
Enfim, o diagnóstico não é apenas um recurso clínico, mas uma engrenagem política e econômica de captura subjetiva. Resistir talvez não seja rejeitar nem se fundir ao diagnóstico, mas dançar em suas bordas, lembrando que a vida sempre escapa aquilo que a nomeia.

