A psicologia moderna se estabeleceu como uma ciência da interioridade, ocupada em analisar e revelar o “verdadeiro eu” por trás das condutas e dos discursos, buscando explicar os sofrimentos e os comportamentos a partir de causas internas – como traços, padrões, estruturas psíquicas e disfunções mentais, transformando a vida em objeto de análise, categorização e administração.
Nesse procedimento, o sujeito passou a ser psicologizado - reduzido a uma identidade e personalidade, interpretado segundo normas e desvios, entendido a partir de uma estrutura de desenvolvimento e categrias, alocando sua existência dentro de um modelo que geralmente desconsidera a singularidade, as diferenças, a complexidade da vida e os atravessamentos sociais.
Despsicologizar a vida propõe romper essa normatização e controle, retomando a arte de viver como uma prática ética e estética de si, onde a vida não é percebida enquanto algo a ser explicado, categorizado ou ajustado, mas experimentada em suas incertezas e singularidade. Ao invés de olhar os afetos, dilemas e conflitos a partir de um olhar psicológico, trata-se de problematizar a lógica que os enquadra.
Isso nos exige um deslocamento, deixar de lado a psicologização dos sujeitos para a escuta das diferenças, dos movimentos, dos afetos e dos rompimentos. Ao invés de buscar identidades, descrições ou categorias, se direciona para afirmar o devir enquanto processo e fluxo em transição permanente, entendendo a vida enquanto algo complexo e múltiplo, e não unitário e identificável.
A psicologia hegemônica tem servido como uma ferramenta de controle social, em sua prática de análise, explicação e classificação dos modos de ser, agindo como um dispositivo de normalização. Sofrimentos que emergem de contextos sociais, políticos, culturais e econômicos são frequentemente encarados como questões meramente pessoais, individualizados e patologizados, desconsiderando sua emergência social.
Uma postura crítica com relação à patologização não contraria a escuta ou o cuidado, mas o modo como a psicologia opera em favor de um regime de controle sobre o corpo e os afetos, centralizando no sujeito a origem de suas dores e questões, tratando este como um objeto a ser ajustado e direcionado de acordo com uma lógica previamente estabelecida, moralmente aceita e socialmente adequada.
Despsicologizar os sujeitos consiste em reduzir a ênfase excessiva na psicologia para explicar as emoções, os problemas, dilemas, conflitos a angústias, reconhecendo que nenhum sofrimento se reduz a causas exclusivamente psíquicas e individuais. Compreende que na angústia, na inquietação e no conflito, há algo que está para além do individuo, mas permeia o campo social, histórico e econômico.
Inclusive, quando buscamos identificar ou decifrar uma pessoa, não tomamos contato com suas diferenças, mas reduzimos esta a categorias, estruturas e lugares. Assim, perdemos o contato com o que nela é distinto e não comum, suprimindo sua singularidade. Ao analisar, organizamos e representamos suas peculiaridades sob uma perspectiva única, que neutraliza o movimento. Mas, quando olhamos para as diferenças, possibilitamos movimentos e transformações, abrindo espaço para o novo.
"A representação tem apenas um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade; ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação."
(Gilles Deleuze, em 'Diferença e repetição')
Podemos pensar e fazer uma psicologia que atue em favor diferença, que não identifique, mas diferencie; que não corrija, mas experimente; que não normalize, mas afirme o o distinto e o imprevisto. Possibilitar um espaço de desanálise, para a diferenciação de si, de desidentificação e criação libertária, consiste em encontrar meios para tomar contato com o virtualmente “novo”, que está em vias de se tornar.
Desacomodar a psicologia é um processo libertar a psicologia de seus modelos dominantes, de seus interesses morais e políticos, dos alicerces positivistas, de seu papel de adaptação social e da sua cumplicidade com discursos que classificam, medem e controlam. É dar lugar a outras práticas, saberes e modos de cuidado que escapem das relações de poder.
Em vez de estabelecer um conhecimento sobre o sujeito, trata-se de abrir espaço para sua diferença e para o desconhecido, para suas rupturas e transgressões. Colocar em questão seus fundamentos, suas práticas e seus efeitos. Escutar os sujeitos não como quem busca identificar o que são, mas como quem caminha junto para que se tornem aquilo que ainda não são. Fazer da terapia um lugar de liberdade e experimentação, não de adaptação ou correção.
Despsicologizar é, em última instância, recusar a domesticação do ser em todas as suas facetas. É afirmar que a vida escapa a qualquer identidade, que o sujeito não precisa ser um, que o sofrimento não deve ser aprisionado em diagnósticos. É abrir-se à complexidade do real, à fluidez e ao movimento de transformação da vida, às múltiplas formas de viver e habitar o mundo. Não buscando colocar ordem no caos, mas reconhecer e valorizar como potência criativa.
Para além da psicologia, este é um convite para outras maneiras de cuidado, de escuta e de vida. Que não interpreta, mas amplia perspectivas e modos de vida. Que não explique, mas acompanhe os movimentos e transformações de cada um. Que não consertem nem ajustem nada, mas que desfaçam as amarras e deixem a diferença florescer. Pois despsicologizar é, sobretudo, devolver ao sujeito sua capacidade de tornar-se outro — sem destino, sem essência, sem identidade fixa.