A psicologia não é uma ciência neutra e voltada apenas ao cuidado ou tratamento do sofrimento emocional e mental. Ela atua a partir de técnicas disciplinares, como o controle, a vigilância e a normalização, para manter uma sociedade organizada e o indivíduo produtivo.
O filósofo francês Michel Foucault entendia o sujeito como resultado dos discursos, dos dispositivos disciplinares e das práticas de poder, que são exercidas por toda uma sociedade, especialmente pelos agentes de poder, como o padre, o policial, o médico, o psicólogo e o psiquiatra.
Segundo Foucault, os dispositivos disciplinares compõem um conjunto de técnicas voltadas ao controle dos corpos: regulando horários, determinando atividades e modos de fazer, delimitando os espaços que cada corpo pode ocupar, e até mesmo as formas “adequadas” de distração e o tempo permitido para cada uma delas.
“A psicologia da adaptação surge, por exemplo, do estudo das formas de inadaptação; a da memória, do esquecimento e do inconsciente; a da aprendizagem, do fracasso escolar.”(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')
No século XIX, as fábricas demandavam uma força de trabalho organizada e disciplinada, inseridas num novo modelo econômico e social que buscava manter a ordem e a produtividade. No século XX, o papel do psicólogo se iniciou associado aos problemas de desajustamento na educação e no trabalho, com a missão de corrigir e ajustar os indivíduos, compondo uma ideia de “normalidade”.
A psicologia, então, passou a funcionar como um dispositivo do poder disciplinar, destinado a “adaptar” as pessoas aos modelos de funcionamento exigidos pela escola e pela fábrica. Além disso, ela produz também discursos que sustentam suas práticas, afirmando “verdades” legitimadas por meio de testes, exames e técnicas, com um ar de cientificidade inquestionável.
“O psicólogo aplicava testes: para selecionar o funcionário certo para o lugar certo, para classificar o escolar numa turma adequada, para treinar o operário, para programar a aprendizagem...”(Figueiredo & Santi, em 'Psicologia: uma (nova) introdução')
Essas práticas ainda se mantêm vivas em grande parte da psicologia contemporânea. Muitos profissionais atuam segundo orientações meramente técnicas, guiados por normativas disciplinares, em vez de se atentarem às singularidades de cada indivíduo ou grupo, direcionando os modos de vida das pessoas a um modelo específico, subordinado a padrões normativos, negligenciando suas diferenças.
O poder disciplinar opera um controle sobre os corpos, tendo como o intuito de reduzir as diferenças e particularidades, domesticando os indivíduos por meio de técnicas “científicas” de docilização e condução. Essas técnicas, baseadas em conhecimentos psicológicos, tornam-se instrumentos eficazes para o controle social e individual.
A disciplinarização se realiza em múltiplas instituições: escolas, fábricas, prisões, hospitais, asilos, quartéis, centros administrativos, meios de comunicação e famílias. Seu funcionamento é, na maioria das vezes, velado e dissimulado sob a aparência de cuidado, tratamento ou liberdade, enquanto guia nossas escolhas segundo normas invisíveis.
“Trata-se dos procedimentos disciplinares praticados em instituições como hospitais, escolas, fábricas e prisões, garantindo uma vigilância e normatização da sociedade autorizada e legitimada pelo saber. Não são estabelecidos por meio de leis, mas pela concordância dos sujeitos com os discursos de verdade.”(Michel Foucault, em 'A Microfísica do Poder')
Essas disciplinas reduzem o campo da liberdade, impondo padrões de conduta, modos de viver, se relacionar e expressar suas emoções. Criam uma sensação permanente de cobrança e autovigilância — um dever de estar sempre “adequado” com a norma.
Por meio dessas experiências, o corpo passa a ser normalizado e colocado a serviço de uma certa ordem social. A psicologia, entre outras formas de saber-poder, participa dessa disciplinarização, limitando a autonomia e a liberdade sob o pretexto de promover “saúde mental” e “tratamento”.
“Sob a forma de testes, entrevistas, interrogatórios, consultas, vemos a psicologia retificar os mecanismos da disciplina. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra, reproduzindo o esquema de poder-saber próprio a toda disciplina.”(Michel Foucault, em 'Vigiar e Punir')
O psicólogo do trabalho serve à indústria, buscando torná-la mais “eficiente”; o psicólogo escolar, ao sistema educacional, visando uma maior “eficácia” dos alunos. Ambos operam a partir de um modelo de normalidade que pouco se direciona aos modos de vida de cada pessoa.
Seu resultado é a produção de corpos dóceis, úteis e obedientes — disciplinados pela vigilância constante, tanto dos outros quanto de si mesmos.
"A disciplina fabrica corpos submissos e adestrados, corpos dóceis. Ela aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).”(Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”)
As instituições disciplinares compartilham a mesma lógica arquitetônica e simbólica: espaços construídos para vigiar, ordenar e normalizar. Com o tempo, os indivíduos internalizam essa lógica e tornam-se também agentes de normalização de si e dos outros.
Perceber esses procedimentos e sua atuação é o primeiro passo para resistir, reinventar e afirmar modos de vida singulares. A crítica, aqui, é um gesto de insubmissão.
Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
FIGUEIREDO, Luiz C.; SANTI, Pedro L.. Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da psicologia como ciência. São Paulo: Educ, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

