Psicologia como técnica de poder

Os saberes e as práticas da psicologia e da psiquiatria estão profundamente atrelados na história dos dispositivos modernos de controle social. Embora apresentadas como campos de cuidado, assistência e promoção da saúde mental, elas operam como tecnologias de poder, produzindo saberes que classificam, normatizam e disciplinam os indivíduos.

Partindo da análise de Michel Foucault, em "Vigiar e Punir" (1975), as ciências do comportamento e da mente se constituíram como engrenagens fundamentais no funcionamento do poder disciplinar. Por isso, se torna necessário uma reflexão crítica sobre a psicologia e a psiquiatria como dispositivos de poder-saber, que atuam na produção de subjetividades e de modelos de vida conforme às exigências da sociedade moderna.


Poder Disciplinar: Fabricação de Indivíduos

O surgimento do poder disciplinar, segundo Foucault, marca uma transição histórica entre o poder soberano, centrado na punição exemplar e no direito de tirar a vida, e uma nova forma de poder que atua de maneira contínua, minuciosa e permanente sobre os corpos e as condutas. Esse processo ocorre entre os séculos XVIII e XIX, período em que o crescimento populacional e a complexificação social demandam novos métodos para administrar, organizar e controlar os indivíduos.

A disciplina, nesse contexto, torna-se uma técnica de poder que visa tornar os corpos úteis, dóceis e produtivos. Atuando nas mais diversas instituições, como escolas, prisões, quartéis, fábricas, hospitais e igrejas, promovendo um controle rigoroso sobre os corpos, os tempos, os gestos e os comportamentos.

“A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; é uma técnica de poder que considera os indivíduos como objetos e instrumentos de seu exercício.”
(Michel Foucault, em 'Vigiar e punir')

Essa produção de indivíduos ocorre por meio de três eixos fundamentais: a distribuição dos corpos no espaço - a arte das distribuições; o controle minucioso das atividades e dos gestos; e a composição de forças, articulando os corpos individuais como peças de um maquinário coletivo.


Panoptismo e Sociedade Disciplinar

A figura que representa o poder disciplinar é o panóptico, um projeto arquitetônico idealizado por Jeremy Bentham em 1785. Trata-se de uma construção circular, onde uma torre central permite a vigilância constante e permanente de uma série de celas dispostas em círculo. O detalhe principal é que os ocupantes das celas nunca sabem se estão sendo observados, levando-os a interiorizar a vigilância e, assim, se autocontrolar.

Foucault descreve que o panoptismo extrapola as prisões, tornando-se um modelo de organização social a utilizado em escolas, hospitais, fábricas e, inclusive, nas instituições psiquiátricas e nos consultórios psicológicos. É nesse contexto que a psicologia e a psiquiatria passam a exercer um papel central na normalização dos indivíduos.

"Trata-se dos procedimentos disciplinares que são praticados em instituições como hospitais, escolas, fábricas e prisões, garantindo uma vigilância e normatização da sociedade autorizada e legitimada pelo saber. Não são estabelecidos por meio de leis, mas pela concordância dos sujeitos para com os discursos de ‘verdade’."
(Michel Foucault, em 'A microfísica do poder')


Psicologia, Psiquiatria e Poder-Saber

A emergência da psicologia e da psiquiatria durante o século XIX está atrelado à lógica disciplinar. Ambas se constituem como formas de saber que, ao mesmo tempo, são também práticas de poder. Elas não apenas estudam os sujeitos, mas os estruturam e constituem enquanto objetos de conhecimento e intervenção.

Ao transformar comportamentos, emoções, pensamentos e desejos em objetos mensuráveis e classificáveis, psicólogos e psiquiatras operam o que Foucault nomeia como "exame", um dispositivo que combina a vigilância com a produção de saber.

O exame, juntamente com a observação hierárquica e o julgamento normalizador, permitem a inscrição dos sujeitos em registros contínuos, onde seus desvios, condutas, avanços e recaídas são minuciosamente monitorados. Cada laudo, prontuário, diagnóstico ou relatório psicológico é, ao mesmo tempo, uma ferramenta de visibilidade e de controle.


O Olhar Normalizador

A psicologia e a psiquiatria operam com base na lógica da norma, elaborando parâmetros de desenvolvimento, comportamento e saúde mental, estabelecendo distinções fundamentais entre normal e anormal, saudável e doente, ajustado e desajustado, produtivo e improdutivo.

O paradigma da norma não se consiste numa descrição da realidade, mas atuando como um imperativo de correção, uma medida de coerção e condução de corpos e subjetividades. Tudo aquilo que escapa da norma se torna alvo de intervenção, seja por meio de terapias, diagnósticos, treinamentos, medicalização ou institucionalização.

"A psicopatologia do século XIX (e talvez ainda a nossa) acredita situar-se e tomar suas medidas com referência num 'homo natura' ou num homem normal considerado como um dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade, esse homem normal é uma criação."
(Michel Foucault, em 'História da loucura na Idade Clássica')


Disciplina dos Corpos e das Mentes

O poder disciplinar, quando utilizado na prática clínica, atua tanto sobre os corpos quanto sobre os aspectos psíquicos, cognitivos e emocionais dos sujeitos. A psiquiatria, por meio da internação, da farmacologia e dos diagnósticos, impõe modelos de normalidade mental e emocional.

A psicologia organiza a subjetividade dos indivíduos a partir de modelos de desenvolvimento, desempenho, controle emocional e funcionalidade, praticando uma "ortopedia da subjetividade", direcionando comportamentos e emoções a um modelo de normalidade.

Essa gestão do comportamento acontece desde a infância, por meio de avaliações escolares, laudos psicopedagógicos, testes de inteligência, acompanhamento de desenvolvimento, seguindo até a vida adulta, no contexto do trabalho, familiar ou clínico.

"A psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder saber próprio a toda disciplina."
(Michel Foucault, em 'Vigiar e Punir')


Interiorização da Vigilância

Uma das características mais sofisticadas da psicologia enquanto mecanismo de poder é a interiorização do controle. Ela ensina os indivíduos a se observarem, a se avaliarem e a se corrigirem, tornando-se um "panóptico subjetivo" de autocontrole e autocorreção. O sujeito se torna um gerenciador e de si mesmo, se comparando constantemente aos padrões de saúde, equilíbrio, produtividade e bem-estar.

A clínica terapêutica, longe de ser neutra, pode operar como um espaço de reforço dos dispositivos de poder, especialmente quando direcionada para a normalização, adaptação e busca por performances subjetivas ideais.

No campo da saúde mental, diagnósticos psiquiátricos e psicológicos, como transtorno de ansiedade, depressão, TDAH, transtorno de personalidade e outros, tornam-se rótulos que definem quem precisa de correção, acompanhamento e intervenção, muitas vezes sem questionar as condições sociais, econômicas e culturais que produzem o sofrimento emocional.


Psicologia e Sociedade Disciplinar

Na sociedade contemporânea, marcada por uma rede capilar de poder e controle, a psicologia e a psiquiatria se tornaram ferramentas sofisticadas para administrar a vida. Não se trata apenas de cuidar do sofrimento, mas de enquadrar os sujeitos nos moldes de normalidade exigidos pela sociedade produtiva, capitalista e disciplinada.

Essa prática é visível nas escolas, nas clínicas, nos hospitais, nas empresas, nas políticas públicas e até mesmo nas sugestões cotidianas de autocuidado e desenvolvimento pessoal. A crítica foucaultiana não nega a importância do cuidado psicológico ou da atenção à saúde mental, mas busca explicitar como esses campos estão profundamente atrelados aos dispositivos de poder e de normalização.

Diante disso, é urgente uma reflexão ética e política sobre as práticas da psicologia: Estamos cuidando quem, para quê? Cuidar significa necessariamente em ajustar? A quem serve a psicologia? É possível construir práticas terapêuticas que não sejam dispositivos de controle, mas espaços de libertação, singularização e criação de outros modos de vida?

Pensar uma psicologia e uma psiquiatria para além do paradigma disciplinar é um desafio crucial, sobretudo numa sociedade onde, cada vez mais, transforma o cuidado numa extensão da vigilância e do controle.


Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Trad.: Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
DÍAZ, Esther. A filosofia de Michel Foucault. Trad.: Cesar Candiotto. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. Tradução: José Teixeira Coelho Neto. 11 ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad.: Raquel Ramalhete. 42ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GUARESCHI; HÜNING; FERREIRA [et al.]. Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
TAYLOR, Dianna (org.). Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

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