Teoria como caixa de ferramentas

Pensar a teoria como uma caixa de ferramentas é uma maneira aberta e não dogmática de utilizar o conhecimento. Em vez de partir de uma teoria para conceber e explicar toda a vida e a realidade, essa metáfora sugere que as teorias e os conceitos sejam usados como instrumentos e ferramentas, servindo para algo específico, de forma localizada e situada.

Uma caixa de ferramentas contém chaves, alicates e martelos, que usamos conforme a necessidade ou a situação que precisamos resolver. Entender a teoria como ferramenta consiste em pensar seus conceitos, métodos, análises e proposições como instrumentos para usos particulares, sem a pretensão de responder a todas as questões, mas sendo usada para um contexto e necessidade específicos.

Neste sentido, uma teoria não seria usada para explicar o mundo, mas para agir no mundo. Ela deixa de ser contemplativa, para atuar de maneira prática; deixa de ser totalizante, para ser singular. Tal como uma ferramenta, a teoria pode servir para uma situação e não servir para outra. Não há uma teoria que sirva para tudo, toda teoria tem seu uso específico e limitado.

"(...) uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio, mais ou menos afastado"
(Gilles Deleuze, em 'Os intelectuais e o poder')

Segundo esta perspectiva, cada pensador pode compor sua "caixa de ferramentas teórica" incluindo saberes e experiências. Essa caixa pode ser combinada de diversas maneiras, criando novas ferramentas teóricas e compondo novas configurações. De acordo com Foucault, uma teoria não possui valor apenas por seu aspecto argumentativo, mas especialmente quando ela funciona, quando é aplicável.

Esse entendimento rompe com a ideia tradicional da filosofia como contemplação de verdades eternas, relacionando o pensamento com a ação, criação e experimentação. Pensar não é permanecer sobre a realidade, analisando de cima, mas se envolver na vida concreta, numa relação prática e criativa com as teorias, sem precisar ser fiel a uma escola, mas fazendo um uso estratégico dos conceitos.

Segundo Michel Foucault, os conceitos não são universais nem fixos, mas instrumentos para intervir em contextos históricos específicos. Eles podem servir para uma realidade, e não para outra. Em vez de ajustar a realidade numa teoria, passa-se a compor teorias a partir de cada realidade. Isso modifica o papel do filósofo como um experimentador, que não usa as teorias para explicar, mas para agir.

"Sou um experimentador, e não um teórico. Chamo de teórico aquele que constrói um sistema global, seja de dedução, seja de análise, e o aplica de maneira uniforme a campos diferentes. Não é o meu caso."
(Michel Foucault, em 'Conversa com Michel Foucault')

Gilles Deleuze também compartilha de uma visão prática e criativa da teoria. Para ele, o conceito não representa, mas funciona - ele é operatório, habilitando pensar e agir de outras maneiras. Com Félix Guattari, entende que os conceitos são criações filosóficas para problemas singulares e não espelhos da realidade, concebendo o pensamento como uma prática ligada à criação e à experimentação singular.

Pensar teorias como ferramentas transforma radicalmente nossa relação com o conhecimento. Assim como uma chave de fenda não serve para martelar, uma teoria não se aplica a qualquer situação, nem em qualquer contexto. As ferramentas são criadas para usos específicos, uma ferramenta que serve hoje pode não funcionar amanhã, tal como as teorias.

Uma ferramenta pode envelhecer, se desgastar e perder sua eficácia, o mesmo acontece com os conceitos, métodos e teorias. Eles não são verdades eternas, mas criações humanas, que emergem em contextos históricos, culturais e sociais específicos, para finalidades específicas. Se uma teoria não conecta mais com a realidade, ela precisa ser revista, ajustada ou até mesmo abandonada.

"Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá−la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem−se outras; há outras a serem feitas."
(Gilles Deleuze, em 'Os intelectuais e o poder')

Cada teoria é criada para enfrentar desafios singulares de uma situação. A caixa de ferramentas teórica é como uma bricolagem, um processo criativo de combinar diversos elementos para compor algo novo e distinto, onde combinamos autores e teorias, conectando saberes distintos. Criar é juntar, transformar, recombinar, articulando diferentes perspectivas para lidar com diferentes problemas.

Uma teoria não permanece apenas no papel, ela vive enquanto opera, quando funciona. Citando Marcel Proust, Foucault dizia “pensem meus livros como uma caixa de ferramentas, usem onde forem úteis, se não forem deixem de lado”. Essa passagem retrata a singularidade da teoria, ela não é uma verdade, mas um recurso, uma ferramenta, que ajuda a enfrentar as questões e situações da vida prática.

Pensar dessa maneira nos permite furar as bolhas teóricas, romper fronteiras e misturar saberes, pensando a partir da realidade, da história e das relações, entendendo que nenhuma teoria serve para tudo e que nenhum conceito é universal, mas são sempre locais, situados, históricos, servindo a alguém num certo momento, para um problema específico.

Para isso, é interessante manter nossas caixas de ferramentas abertas à crítica e transformação. A teoria é um instrumento para a ação, não um fim em si mesma, ela não deve buscar a explicação total de um fenômeno, mas multiplicar distintas interpretações possíveis. Ela não se limita a um ponto de vista, mas se expande e se ramifica, gerando diferentes aplicações, possibilidades de compreensão e atuação.

"A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica.”
(Michel Foucault, em 'Os intelectuais e o poder')

Essa visão desloca a filosofia da posição tradicional de "guardiã da verdade" para uma posição de criadora de possibilidades. Se a teoria é uma ferramenta, e não uma totalidade, então o filósofo é mais um artesão-criador do que um legislador da verdade.

Ao pensar a teoria como caixa de ferramentas deixamos de buscar uma teoria para explicar tudo, passando a conectar ideias e conceitos. A questão principal deixa de ser "qual a melhor teoria?" mas: O que posso usar de minha caixa de ferramentas teóricas para uma situação ou realidade específica? Quais conceitos me ajudam a escutar, a experimentar e a possibilitar saídas para uma situação específica?


Referências:
DELEUZE, Gilles & FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. Em: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
FOUCAULT. Conversa com Michel Foucault. In MOTTA, Manuel Barros da (Org.). Ditos e Escritos (Vol. VI). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

Romper com Moralismos

Inspirado em Nietzsche, este ebook é um convite para rir do moralismo, abrir espaços de liberdade e compor a vida como obra de arte. Para libertar-se das culpas herdadas, de julgamentos que diminuem e regras que seguimos sem questionar...