Perspectivismo é uma das características mais destacadas do pensamento nietzschiano. Embora o termo não tenha sido usado sistematicamente por Nietzsche, essa noção atravessa praticamente toda a sua obra, desde as críticas iniciais à tradição metafísica até seus fragmentos finais, onde avaliação e interpretação aparecem de maneira mais evidente.
Friedrich Nietzsche contrariou a possibilidade de um conhecimento absoluto e não perspectivado, entendendo que todo conhecimento parte de uma avaliação, resultante de uma interpretação relacionada a forças vitais, condições culturais e interesses específicos. Ao invés de buscar uma “verdade única”, o filósofo propõe o exercício de uma multiplicidade de interpretações.
"Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche considera sempre determinado por certa perspectiva, seja individual, seja sócio culturalmente determinada."
(Oswaldo Giacoia, em 'Nietzsche', 2000)
O perspectivismo faz parte de sua crítica à tradição filosófica ocidental, especialmente ao platonismo e cristianismo, que defendiam a ideia de uma verdade eterna, imutável e independente do sujeito. Nietzsche problematizou a ideia de uma verdade absoluta, para ele o conhecimento é sempre mediado por perspectivas individuais e interpretações, não havendo verdades independentes do observador.
"Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações."
(Nietzsche, KSA XII, 7 [60])
Para Nietzsche, a realidade é múltipla e multifacetada, e cada indivíduo a interpreta de uma maneira específica. Em vez de buscar uma verdade objetiva, ele sugeria a análise das interpretações, para ampliar compreensões possíveis de distintos pontos de vista. A passagem "verdade como interpretação" sugere que a verdade não seja algo a ser descoberto, mas algo criado por meio da interpretação.
Cada interpretação é entendida como uma avaliação de valor, uma expressão de força e um modos de vida, que afirma ou nega a existência. Deste modo, não há um ponto de vista único, neutro ou "desinteressado", mas toda perspectiva é interessada, seja no sentido de conservação e manutenção, ou no sentido de expansão e criação de possibilidades de vida.
"(...) quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela."(Nietzsche, em 'Genealogia da Moral')
Essa metáfora não se trata de um relativismo, mas de uma pluralidade hierarquizável de pontos de vista e perspectivas possíveis sobre algo. Para Nietzsche, algumas perspectivas ampliam enquanto outras reduzem. As perspectivas que ampliam a potência possibilitam a criação de valores e a afirmação da vida, são contrárias aquelas que tendem a conservação, reduzindo e negando a potência de vida.
Nietzsche sugere que a compreensão de algo nunca é obtida por meio de uma única perspectiva, mas pela multiplicidade de interpretações e afetos direcionados a esse "algo". Para ele, a verdade é uma construção perspectiva, a partir de uma forma de ver e conceber o mundo, influenciada por experiências e valores.
Portanto, quanto mais afetos - sentimentos, perspectivas e interpretações forem considerados sobre um determinado assunto, mais amplo será o nosso "conceito" em relação a ele. Quanto mais ampliamos as perspectivas possíveis, de maneira mais ampla concebemos uma coisa. Como não há uma verdade única e absoluta, o que podemos ter são múltiplos entendimentos.
A escolha de uma interpretação em detrimento de outras é uma forma de valorar, de estabelecer uma perspectiva sobre outras, podendo ser uma expansão ou retração da vida. Quando permitimos que diversos afetos falem sobre uma coisa, expandimos perspectivas e ampliamos possibilidades de interpretação, o que nos permite afirmar a vida de outras maneiras.
“O que é, pois, a verdade? Uma multidão de metáforas, metonímias, antropomorfismos... verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são.”(Nietzsche, em 'Verdade e mentira no sentido extra-moral')
Contrário à epistemologia tradicional, que concebe o conhecimento como uma representação fiel da realidade, o perspectivismo o entende o conhecimento como criação. Para Nietzsche, conhecer é sempre valorar. O conhecimento não descreve, mas transforma. O que entendemos por "verdade" não passa de uma convenção mantida pelo uso, pelos costumes e pelas relações de poder.
Diferente da fenomenologia, que busca descrever a essência da experiência tal como aparece à consciência, suspendendo juízos sobre a existência objetiva do mundo ("epoché"), o perspectivismo de Nietzsche rompe com as “essências”, pois entende que estamos sempre interpretando a partir de forças e valores, além disso, a consciência é um efeito secundário das forças vitais.
Contrariando a psicanálise, que entende o sujeito como efeito de forças inconscientes, interpretáveis por uma hermenêutica da suspeita, o perspectivismo nietzschiano concebe o inconsciente como vontade de potência, recusando a ideia de um núcleo psíquico estável a ser revelado. Para Nietzsche, o sujeito é uma multiplicidade de máscaras.
"Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos (...) Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser (...) tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas."
(Friedrich Nietzsche, em 'Humano, demasiado humano')
A interpretação é um processo ativo de construção de sentido, e não uma mera descoberta de algo preexistente, possibilitando conceber a realidade por diferentes ângulos. O perspectivismo nietzschiano não é um relativismo, mas uma mudança de entendimento epistemológico, reconhecendo que todo olhar vem de algum lugar, que não há ponto de vista neutro e que o valor de uma perspectiva se mede por sua potência de criar e afirmar a vida.