Perspectivismo de Nietzsche

Perspectivismo é uma das características mais destacadas do pensamento nietzschiano. Embora o termo tenha sido usado poucas vezes por Nietzsche, essa noção atravessa praticamente toda a sua obra, desde as críticas iniciais à tradição metafísica até seus fragmentos finais, onde avaliação e interpretação aparecem de maneira mais evidente.

"O que se denomina 'conhecimento', lemos em Genealogia da Moral, é sempre condicionado por uma determinada perspectiva. É o homem - ou melhor, seus impulsos e afetos - que, de sua própria ótica, introduz interpretativamente no mundo aquilo que nele acredita simplesmente encontrar."
(Corbanezi, em 'Dicionário Nietzsche')

Friedrich Nietzsche contrariou a ideia de um conhecimento absoluto e não perspectivado, entendendo que todo conhecimento parte sempre de uma avaliação e de uma perspectiva, resultante de uma interpretação relacionada a forças vitais, condições culturais e interesses específicos. Ao invés de buscar uma “verdade única”, ele nos propõe o exercício da multiplicidade de perspectivas.

"Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche considera sempre determinado por certa perspectiva, seja individual, seja sócio culturalmente determinada."
(Oswaldo Giacoia, em 'Nietzsche')

O perspectivismo faz parte de sua crítica à tradição filosófica ocidental, especialmente ao platonismo e cristianismo, que defendiam um ideal de "verdade", eterna, imutável e independente do sujeito. Nietzsche problematizou a ideia de uma verdade absoluta, pois para ele o conhecimento é sempre mediado por perspectivas individuais e interpretações, não havendo verdades independentes do observador.

Para Nietzsche, a realidade é múltipla e multifacetada, e cada indivíduo a interpreta de uma maneira específica. Em vez de buscar uma verdade objetiva, ele sugeria a análise das diversas interpretações e perspectivas, para ampliar compreensões a partir de distintos pontos de vista. Ele sugere que a verdade não seja algo a ser descoberto, mas estabelecido por meio da interpretação perspectiva.

Neste sentido, o ideal de "conhecimento em si" é absurdo, pois todo conhecimento é apenas um conhecimento perspectivado. Apesar disso, podemos utilizar o perspectivismo em nosso favor, considerando a diversidade de perspectivas sobre cada tema e situação, ao invés de nos determos a uma delas. Existem múltiplas perspectivas, e nenhuma delas refere-se ao conhecimento acabado sobre algo. Como as perspectivas não são fixas, podemos nos abrir sempre a novas perspectivas e olhares possíveis.

Cada interpretação é entendida como uma avaliação de valor e uma expressão de forças, com intuitos específicos, que sustentam modos de vida, afirmando ou negando a existência. Deste modo, nunca há um ponto de vista único, neutro ou "desinteressado", pois toda perspectiva é interessada, seja no sentido de conservação e manutenção, ou no sentido de expansão e criação de possibilidades de vida.

O perspectivismo não é o mesmo que relativismo, mas uma pluralidade hierarquizável de interpretações sobre algo. No relativismo tanto faz o entendimento, mas para Nietzsche há perspectivas que ampliam e outras que encolhem a vida. As perspectivas que ampliam possibilitam a criação de valores potentes e criativos, contrárias as que tendem a conservação, que reduzem e negam a potência de vida.

"(...) quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela."
(Nietzsche, em 'Genealogia da Moral')

Para Nietzsche, o que entendemos por "verdade" é uma construção perspectiva, que direciona uma única forma de ver e conceber o mundo, influenciada por experiências e valores de uma época. Por isso, ele sugere que a compreensão de algo nunca é obtida por meio de uma única perspectiva, mas pela multiplicidade de interpretações e afetos direcionados a esse "algo".

Deste modo, quanto mais afetos - sentimentos, perspectivas e interpretações forem considerados sobre um determinado assunto, mais amplo será o nosso "conceito" em relação a ele. Quanto mais ampliamos as perspectivas, de maneira mais ampla concebemos uma coisa. Como não há uma verdade única e absoluta, o que podemos ter são múltiplos entendimentos.

A escolha de uma interpretação em detrimento de outras é sempre uma forma de valorar, de estabelecer um entendimento sobre outros, podendo ser uma expansão ou retração da vida. Quando permitimos que diversos afetos falem sobre uma coisa, expandimos perspectivas e ampliamos possibilidades de interpretação, o que nos permite afirmar a vida de outras maneiras. 

“O que é, pois, a verdade? Uma multidão de metáforas, metonímias, antropomorfismos... verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são.”
(Nietzsche, em 'Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral')

Contrário à epistemologia tradicional, que concebe o conhecimento como uma representação fiel da realidade, o perspectivismo o entende o conhecimento como criação. Para Nietzsche, conhecer é valorar. A interpretação não descreve algo, mas estabelece um olhar sobre esse algo. O que entendemos por "verdade" não passa de uma convenção mantida pelo uso, pelos costumes e pelas relações de poder.

Diferente da fenomenologia, que busca descrever a essência da experiência tal como aparece à consciência, suspendendo juízos sobre a existência objetiva do mundo ("epoché"), o perspectivismo de Nietzsche rompe com as “essências”, pois entende que interpretamos sempre a partir de forças e valores, além disso, para ele a consciência é um efeito secundário das forças vitais.

Contrariando a psicanálise, que entende o sujeito como resultante das forças e jogos inconscientes, interpretáveis por uma hermenêutica da suspeita, o perspectivismo nietzschiano concebe o inconsciente como vontade de potência sem direção específica, recusando a ideia de um núcleo psíquico estável a ser revelado. Para Nietzsche, o sujeito é uma multiplicidade de afetos e máscaras.

"(...) o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser (...) tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas."
(Friedrich Nietzsche, em 'Humano, demasiado humano')

Para Nietzsche, a interpretação é um processo ativo de construção de sentidos e valores que possibilita conceber a realidade por diferentes ângulos. O valor de uma interpretação só pode ser avaliado pela vida, quando esta afirma ou intensifica a própria vida.

Seu perspectivismo propõe uma mudança de entendimento epistemológico, reconhecendo que todo olhar vem de algum lugar, que não há ponto de vista neutro e que o valor de uma perspectiva se mede por sua potência de criar e afirmar a vida.


Referências:
CORBANEZI, Eder. Perspectivismo. Em: GEN - Grupo de Estudos Nietzsche. Dicionário Nietzsche. São Paulo: GEN/Loyola 2016.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Romper com Moralismos

Inspirado em Nietzsche, este ebook é um convite para rir do moralismo, abrir espaços de liberdade e compor a vida como obra de arte. Para libertar-se das culpas herdadas, de julgamentos que diminuem e regras que seguimos sem questionar...