Devir é mudança, fluxo, movimento, que acontece em permanente transformação, onde nada permanece fixo ou estável. É sinônimo de transitoriedade, impermanência, incerteza e indeterminação.
Nossa vida e as coisas no mundo estão sempre em devir, se transformando. Porém, vivemos numa sociedade e numa época que nos cobra atitudes e comportamentos determinados e constantes, que nos exige uma certa permanência, incompatível com a mudança e impermanência do devir.
"Nunca nos banhamos nos mesmos rios, pois a água não é a mesma e nós também não somos os mesmos."
(Heráclito de Éfeso)
As solicitações e demandas sociais nos aparecem como um dever, o famoso "ter que" fazer isso ou aquilo, que impõe uma série de exigências e expectativas externas sobre nós, e com o tempo nós mesmos passamos a internalizar e a nos autocobrar.
O dever impede e bloqueia o fluxo do devir, ele nos exige um modo de ser específico, um modelo de vida, uma ação conforme o esperado, independente das transformações e do movimento das coisas. É contrário ao fluxo da vida e do devir.
Dever é uma organização que se apossa de nosso corpo, de nossas atividades e gestos, até mesmo de nosso lazer e descontração, penetrando no mais íntimo de nosso ser, nos exigindo uma maneira de ser e de se portar, nos ajustando a uma "razão" e uma "coerência".
Isso acontece de maneira tão penetrante que faz parecer "comum", "normal" e "razoável" que nossas atitudes e pensamentos tenham uma ordem e coerência, que sigam um caminho específico, e que não saiam do esperado. Mas é isso justamente que impede o imprevisto, o incerto e a vivência de uma experiência, de um acontecimento, que se faz no experienciar do devir em sua transitoriedade originária.
A moral nos cobre de razão e de ordem, nos direciona caminhos e movimentos, suprimindo assim o movimento do devir, a possibilidade de romper, de experimentar outros modos de vida, andar por lugares ainda não traçados e não seguros, o que seria justamente viver uma experiência.
Reconhecer o devir é justamente aceitar a transitoriedade do mundo e de nós mesmos, a impermanência, a descontinuidade, a fragmentariedade das coisas, bem como o processo, os acontecimentos, as experiências e a inconstância. O desejo de ordem e de manutenção nos impede a transformação do devir.
"Nosso mundo é muito mais o incerto, o cambiante, o variável, o equívoco, um mundo perigoso talvez, certamente mais perigoso do que o simples, o imutável, o previsível, o fixo, tudo aquilo que os filósofos anteriores, herdeiros das necessidades do rebanho e das angústias do rebanho, honraram acima de tudo.”
(Nietzsche, em 'Vontade de Potência II')