Pensar a filosofia da diferença de Gilles Deleuze na prática terapêutica consiste em repensar e contrariar algumas tendências tradicionais de encarar a subjetividade e lidar com o sofrimento emocional, valorizando a singularidade e o processo de criação de novas maneiras de vida, e não diagnosticar ou interpretar o indivíduo a partir de estruturas fixas.
Ao invés de encarar a identidade como algo a ser representado ou identificado, a perspectiva da diferença concebe a pessoa como um processo em constante transformação, sem um ponto de chegada a ser alcançado. A terapia pretende colaborar para a criação e o encontro de novos modos de vida, afirmando as diferenças e as transformações que atravessamos, evidenciando o processo, em vez de tentar identificar uma "personalidade" ou restaurar um "eu" idealizado.
O pensamento da diferença contraria as tendências tradicionais do pensamento ocidental, bem como dicotomias e as categorias como "normal" e "patológico", "saúde" e "doença", "certo" e "errado", "adequado" e "inadequado". Por isso, na prática terapêutica não se buscam diagnósticos, interpretações, classificações ou categorizações, mas uma abertura para a multiplicidade das experiências singulares de cada um, sem tentar encaixá-las em alguma definição.
Entende-se que a diferença não é algo a ser eliminado ou resolvido, como muitas terapêuticas fazem e lidam com os sintomas. Se diferencia das terapêuticas convencionais, concebendo a diferença enquanto uma potência criativa, um processo que possibilita o surgimento de novas maneiras de ser e se colocar no mundo. No contexto terapêutico podemos explorar os afetos, as experiências e emoções como potências de criação e transformação de si.
Não precisamos "representar" a nós mesmos ou os outros em identidades e categorias. Ao questionar as narrativas que as pessoas constroem sobre si mesmas, nos abrimos a uma percepção mais livre e aberta sobre nós mesmos e do que podemos fazer de nossa experiência, sem algo que nos delimite, sem depender de uma representação ou identidade coerente, constate e fixa. Trata-se de uma abertura para o devir em seu processo e multiplicidades.
Uma maneira possível de tomar contato com a diferença é a criação de "mapas" e "paisagens" dos afetos e das intensidades de uma pessoa, ao invés de buscar uma linearidade histórica. Em vez de encarar a vida da pessoa como uma série de eventos com causas e consequências, a terapêutica da diferença propõe mapear os fluxos de desejos, afetos e intensidades que atravessam a pessoa, de modo a pensar como podem ser redirecionados ou recriados.
Incluir essas noções na prática clínica requer uma abertura à criatividade e experimentação, tanto na maneira de abordar a pessoa, quanto nas intervenções utilizadas, possibilitando diálogos que explorem distintas perspectivas e afetos envolvidos. Nesse sentido, o intuito da terapia não deve ser "curar" a pessoa, tal como na concepção tradicional, mas promover o acesso à sua dinâmica afetiva em devir, visando possibilitar outras formas de vida.
O método cartográfico se diferencia dos métodos tradicionais de diagnóstico e análise centrados na causalidade linear ou numa estrutura de personalidade. A cartografia envolve mapear os fluxos e movimentos da vida da pessoa - seus afetos, desejos, receios, relações e acontecimentos - compondo mapas, territórios e paisagens possíveis, sem tentar representar em categorias, sem buscar identificar.
A cartografia propõe mapear os afetos que atravessam uma pessoa, percebendo o modo como está sendo afetada por suas experiências e como reage a elas, inclusive como se coloca na vida. Ao invés de buscar identificar causas para os sintomas, o terapeuta mapeia os afetos e as "linhas de fuga" que a pessoa traça para lidar com seus dilemas e seu mal-estar, visualizando como esses fluxos se organizam e reorganizam.
Territórios existenciais são campos de experiência onde a pessoa se encontra, que estão em permanente transformação. A cartografia possibilita perceber os "territórios" que a pessoa está habitando atualmente, sejam estes territórios de estabilidade ou de crise, como está lidando com estes territórios e quais as fronteiras que está cruzando no momento. Trata-se de uma exploração de territórios afetivos e existenciais.
O desejo é concebido enquanto uma força produtiva que move a pessoa, sempre fluindo e reorganizando a vida. Deste modo, a cartografia busca reconhecer os fluxos de desejo e perceber como eles se conectam ou se interrompem. Esse procedimento possibilita ao terapeuta auxiliar a pessoa a constatar como os desejos estão sendo bloqueados, impedidos ou distorcidos, podendo desviar para outros caminhos.
Na prática da cartografia, o terapeuta não busca um "eu" fixo ou coeso, mas trabalha com as multiplicidades e virtualidades — as diferentes facetas da pessoa que coabitam simultaneamente. Essas multiplicidades não precisam ser integradas numa narrativa coesa, mas são exploradas em sua diversidade.
Esta prática visa tomar contato com os movimentos que possibilitam novos modos de vida, diferenciando das normas dominantes e do que é esperado de uma pessoa. Na prática, terapeuta e paciente co-criam mapas abertos, em transformação constante. Esses mapas auxiliam a perceber as forças, os afetos e os desejos, oferecendo uma visão mais fluida da subjetividade, buscando abrir novos territórios e potencializar os fluxos de vida.
A cartografia leva em consideração o contexto em que a pessoa está inserida e as forças externas que atravessam a pessoa, como as normas sociais, as condições políticas e econômicas, as expectativas culturais e as relações de poder. Ao mapear essas forças, podemos auxiliar a pessoa a entender como impactam sua subjetividade, pensando como é possível resistir ou reorganizar esses fluxos.
Em vez de identificar categorizações ou interpretações sobre a pessoa, a cartografia privilegia o acompanhamento de processos, mapeando fluxos, territórios e linhas de fuga que compõem a experiência e as relações de uma pessoa. Entende o sujeito como um conjunto de processos em constante transformação, não como algo fixo ou essencial, visando identificar territórios e desterritorializações, tomando contato com as dinâmicas desejantes e os afetos.
Territórios são as zonas de segurança ou repetição nas quais o sujeito está ancorado, como rotinas, crenças, lugares e relações. Desterritorializações são os movimentos de saída desses territórios, que podem ser criativos ou desestabilizadores, vibrantes ou angustiantes. As linhas de fuga consistem nos escapes criativos que permitem o sujeito inventar novos modos de existir, mesmo que inicialmente pareçam caóticos ou difíceis.
O terapeuta acompanha esses processos sem julgar ou patologizar, trabalha sobre multiplicidades e intensidades heterogêneas, não buscando uma entidade unificada, mas auxiliando a mapear as diferentes forças e desejos que atravessam a pessoa, dando atenção ao corpo e aos afetos. O corpo é percebido como um espaço de experimentação e produção, os afetos são fundamentais para mapear tais experiências.
A cartografia não busca "resolver problemas" no sentido tradicional da terapia, mas possibilitar a criação de novos modos de existência que afirmem a vida em sua beleza e caos. A experimentação permite que o sujeito encontre novas conexões possíveis e outras maneiras de habitar o mundo.