Psicopoder e o sujeito de desempenho

 
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, é uma figura destacada na discussão contemporânea sobre o poder, a subjetividade e as novas formas de controle na sociedade. Em suas obras, Han apresenta os conceitos de psicopolítica e psicopoder, fundamentais para compreender como as dinâmicas de controle e manipulação que operam na era da informação e do neoliberalismo.

Psicopolítica - Um controle subjetivo

Na atualidade, os dispositivos de controle não se limitam mais ao controle do corpo ou às técnicas disciplinares, mas se expandem para o domínio da mente e subjetividade. Han entende que, na sociedade contemporânea, os indivíduos são levados a internalizar as normas e os valores que antes eram impostos externamente, num processo de autoexploração que transforma a liberdade num aprisionamento, onde o indivíduo se torna seu próprio vigia e explorador.

Neste novo cenário, a produção de subjetividade passa a ser gerida por novas formas de controle, que se utilizam da persuasão e motivação, ao invés da coerção e do medo. A psicopolítica se manifesta inclusive nas práticas de autocuidado e autoaperfeiçoamento, onde o indivíduo é constantemente incentivado a otimizar seu desempenho e a maximizar suas potencialidades, não sob o olhar de uma autoridade, mas dos padrões sociais internalizados.

"A psicopolítica neoliberal inventa formas de exploração cada vez mais refinadas. Inúmeros workshops de gestão pessoal, fins de semana motivacionais, seminários de desenvolvimento pessoal e treinamentos de inteligência emocional prometem a otimização pessoal e o aumento da eficiência sem limites."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')


Psicopoder e a Sociedade do Desempenho

A noção de psicopoder complementa a de psicopolítica, refere-se ao modo como o poder se infiltra na psique dos indivíduos. O psicopoder não opera apenas em instituições, mas se estende às relações interpessoais e aos modos de vida que cada pessoa adota para si. A ação penetrante deste poder está no fato de que ele não se apresenta como uma força opressora, mas como algo a ser desejado e buscado pelo sujeito.

Han critica o modo como as redes sociais e as tecnologias digitais amplificam a atuação da psicopolítica e do psicopoder, onde a comparação constante com os outros se torna uma norma e um modelo de vida a ser adotado. A pressão para se destacar e ser reconhecido gera novas formas de sofrimento, onde a solidão e a ansiedade emergem como consequências inevitáveis da busca incessante por validação e aprovação.

"O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora voluntariamente a si mesmo."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')


Implicações nos Sujeitos

Esses conceitos nos ajudam a pensar sobre como a tecnologia e o neoliberalismo impactam em nossa subjetividade e relações, inclusive quais os meios de resistência podemos buscar diante dessa nova configuração de poder. As técnicas de poder no contexto do neoliberalismo entraram em nossa alma, internalizando o controle e fazendo parecer com "liberdade", explorando e culpando o sujeito por seu cansaço.

As metas organizam nossa subjetividade em diferentes contextos: no trabalho, nos aplicativos de produtividade, nos planners e agendas. O neoliberalismo não reprime, mas convida. Não impõe, mas convence. Sua força está justamente na delicadeza com que nos captura, na suavidade com que transforma dor em produto e o colapso em performance. Até mesmo o sofrimento e a crise precisam ser performáticos e produtivos.

"Hoje, cada um é um trabalhador que explora a si mesmo para a sua própria empresa. Cada um é senhor e servo em uma única pessoa."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')

No regime neoliberal, o fracasso precisa render. A crise pessoal é transformada em episódio de podcast, a depressão se transforma em post motivacional, e o burnout é encarado como uma "fase de crescimento" e aprendizagem. O sofrimento precisa ser constantemente recodificado, estetizado e monetizado. A subjetividade se tornou uma linha de produção: se recompõe rapidamente, retornando mais ativa e disponível.

A lógica de desempenho não se limita ao expediente. Mesmo em casa, continuamos online, acompanhando mensagens e notificações. O corpo tenta descansar, mas a mente continua atrelada às planilhas e pendências. O tempo já não se divide entre o trabalho e o lazer — agora tudo é trabalho e produção. Até o descanso precisa ser útil, saudável, produtivo. O ócio tem de ser criativo e performático.

"(...) no regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela não transforma os explorados em revolucionários, mas sim em depressivos."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')

Essa nova forma de controle é sofisticada por ser íntima e sutil. Ela não se impõe com ordenamentos, mas criando desejos - o sujeito é configurado para querer o que o sistema precisa dele: ser produtivo, rápido, resiliente e emocionalmente inteligente, se esforçando sempre para se tornar sua “melhor versão”. Não há mais um chefe apontando e gritando, mas uma voz interna, polida e terapêutica, que diz "você pode mais".

A opressão mudou de forma, deixou o castigo e abraçou o coaching. A palavra de ordem se transformou em "discurso de empoderamento". Cada pessoa hoje acredita ser livre para fazer o que quiser, mas apenas enquanto estiver produzindo, rendendo e performando. Desde que sorria, mesmo na exaustão, desde que entre em colapso com elegância. O cansaço se normalizou porque ele serve ao capital.

Essa captura do sofrimento é talvez o traço mais perverso do neoliberalismo. Ele nos ensinou sentir culpa pelo cansaço, nos estimulando a viver numa exaustão constante como medalha silenciosa de compromisso. A depressão, nesse contexto, não é um desvio, mas a crise de uma subjetividade treinada para render sem parar, amar o que faz, sorrir sob pressão e performar mesmo adoecida, sem permissão para simplesmente parar.

"Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha por isso. Aí está a inteligência peculiar do regime neoliberal: não permite que emerja qualquer resistência ao sistema."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')

Hoje, sentir-se livre é um dever, cada pessoa deve ser "dono de si": gerenciar sua rotina, suas emoções e seus fracassos. E quando falha, a culpa é totalmente sua. Não por ser explorado, mas por não ter se esforçado o suficiente ou por não praticar a meditação ou a "inteligência emocional". Antes, exploravam nossa força de trabalho, agora exploram nossa subjetividade e nosso desejo. O trabalho não termina — ele se disfarça de vida.

O neoliberalismo transformou a crise em conteúdo e o sofrimento em coreografia. O sujeito exausto precisa ser admirado. Aquele que se arrasta e entrega é elogiado, quem sofre calado é considerado "maduro". Podemos pensar o cansaço como um sintoma de todo esse contexto, não como falha. Talvez uma reação interessante seja escutar seu silêncio, interromper o desempenho.

"Muito mais eficiente é a técnica de poder que faz com que as pessoas se submetam ao contexto de dominação por si mesmas. Essa técnica busca ativar, motivar e otimizar, não obstruir ou oprimir. A particularidade da sua eficiência está no fato de que não age através da proibição e da suspensão, mas através do agrado e da satisfação. Em vez de tornar as pessoas obedientes, tenta deixá-las dependentes."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')
 
Desacelerar, neste contexto, é um ato político de resistência - recuperar o direito ao vazio, ao erro, ao não saber. Talvez uma forma de resistência seja não ter metas, nem métricas, nem engajamento, mas um espaço para cair e fazer algo distinto, sem se justificar. Quando a gente ousa parar e experimentar outros modos de vida, que estejam fora da lógica neoliberal e do "script da performance".


Referências:
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyné, 2020.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: a dor hoje. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.

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