A escuta dos afetos na terapia

Escutar os afetos, numa perspectiva esquizoanalítica, não se trata apenas de ouvir um discurso, pressupõe mais do que uma mera escuta - solicita uma atenção que atravessa o escutar, envolvendo a pele, os impulsos, os movimentos e o campo intensivo onde as pessoas se movem. Não se trata de escutar "o que é dito", mas o que pulsa, o que vaza, o que transborda, inclusive onde não há palavras.

Antes de iniciar o tema, é preciso diferenciar afetos de emoções ou sentimentos. Na esquizoanálise, afetos não são entendidos como emoções subjetivas ou sentimentos expressos em linguagem, mas como intensidades, modulações de potência, forças que aumentam ou diminuem a capacidade de um corpo de ser afetado, ou afetar outros corpos.

O plano intensivo é aquele onde as forças, os afetos e os fluxos ainda não estão organizados como formas fixas ou identidades estáveis, mas se conectam, se movem e se transformam. Trata-se de um campo de variação contínua, contrário ao extensivo - dos objetos delimitados, das formas já constituídas, onde se pode medir e quantificar.

Neste sentido, o intensivo não é medido por critérios objetivos, mas por diferenças de intensidade, onde os afetos e desejos ainda não foram capturados por uma identidade ou forma, onde os fluxos se movem antes de serem territorializados em discursos, papéis, narrativas ou diagnósticos, onde se percebe a variação contínua de potência.

As características do plano intensivo envolvem ser pré-individual (não se dividiu ainda num "eu" ou num "outro"), qualitativo (configura-se em forma de grau de intensidade), conectivo (as intensidades se propagam, se conectam e se transformam com outras), sempre em devir (onde nada é fixo, mas sempre passageiro, de uma intensidade a outra).

Dizendo de outro modo, o afeto é um vetor, não um conteúdo. Escutar os afetos consiste em captar suas variações de intensidades: quando algo hesita, acelera, escapa, se contrai, se expande. Trata-se de sentir o clima do acontecimento, não apenas analisar o sentido do que se diz. Não se trata de interpretar, mas acompanhar os processos e modulações.

Em vez de interpretar signos, como ocorre comumente na psicanálise tradicional, a esquizoanálise se propõe a cartografar os fluxos, os movimentos dos desejos, das palavras, dos gestos, das intensidades. Escutar os afetos é perceber como esses fluxos se conectam, se bloqueiam ou se desviam, trata-se de olhar para o modo como o conteúdo é expresso, o que pulsa no modo de dizer.

Se uma pessoa em terapia relata estar com "raiva", ao invés de classificar e analisar a raiva enquanto um estado mensurável, podemos tentar captar seus movimentos no plano intensivo, com questões como: Qual a temperatura desta raiva? Em quais momentos ela se intensifica? Com o que ela se conecta? Em quais momentos ela corta? O que ela deseja? O que ela faz mover? Enfim, trata-se de acompanhar a variação, o movimento, o fluxo, não a descrição.

É como escutar a cidade à noite: não se trata de identificar cada som, mas captar a ambiência, a multiplicidade em processo, que fala algo mais profundo que uma voz isolada. A escuta esquizoanalítica é geográfica, não hermenêutica. Perguntas que envolvem essa escuta são: por onde anda o desejo? O que o movimenta? O que o bloqueia?

Afetos são sinais de devires em curso: devir-criança, devir-animal, devir-mulher, devir-máquina… O terapeuta se atenta aos devires como transformações de modos de existir. Escutar afetos é perceber quando alguém começa a deixar de ser “um eu” e se torna algo "outro" e "distinto" — mais fluido, mais múltiplo, mais rizomático.

Muitas vezes os afetos se expressam num tom de voz, numa pausa, num tropeço na linguagem, numa pausa. Por isso, a escuta dos afetos demanda um silêncio interno do terapeuta, silenciar o desejo de organizar o discurso, para ceder um espaço de abertura ao encontro, de modo a escutar o corpo. Se atentar às forças que atravessam a vida, aos modos de existência que estão se formando, como o corpo se movimenta, paralisa ou silencia diante de algo.

Não se trata de "analisar o paciente", mas de entrar em ressonância com ele, quase como uma escuta musical ou coreográfica - a escutar com a sensação, com a respiração, com o campo afetivo que se forma no contato, de modo a compor um espaço para o acontecimento, criar um ambiente propício ao surgimento do novo.

A escuta dos afetos ajuda a mapear onde há vida, onde há morte, onde há potência ou servidão, onde não há caminhos definidos, onde o desejo pode improvisar. Não há “resposta” a um afeto escutado, mas há experimentação, composição, criação. Onde o terapeuta pode propor linhas de fuga, não soluções, co-criando com o analisante novos modos de existir, de desejar, de se conectar ao mundo.

Enfim, escutar afetos na esquizoanálise consiste em acolher as intensidades que atravessam, não para prever o terremoto, mas para dançar com ele. Trata-se de um ato poético, ético e político. A escuta esquizoanalítica é um ato de resistência: que recusa a normalização, a interpretação pronta e a ideia de sujeito fechado. Ela aposta na potência do inacabado, do imprevisível, do porvir.

Deste modo, a perspectiva esquizoanalítica não busca diagnosticar ou direcionar, mas cartografar - mapear territórios de desejo, linhas de fuga, bloqueios e campos de forças. Diante da narrativa de uma pessoa, não estamos lidando com diagnóstico ou apenas com uma história, mas com uma composição intensiva de forças, conexões com outras pessoas, afetos, territorializações, potências e entraves.

Romper com Moralismos

Inspirado em Nietzsche, este ebook é um convite para rir do moralismo, abrir espaços de liberdade e compor a vida como obra de arte. Para libertar-se das culpas herdadas, de julgamentos que diminuem e regras que seguimos sem questionar...