A escuta dos afetos na terapia

Escutar os afetos, numa perspectiva esquizoanalítica, pressupõe mais do que uma mera escuta - solicita uma atenção que atravessa o ouvir, envolvendo a pele, os impulsos, os movimentos e o campo intensivo onde os corpos se encontram. Não se trata de escutar "o que é dito", mas o que pulsa, o que vaza, o que transborda, inclusive onde não há palavras.

Antes de qualquer coisa é preciso diferenciar afetos de emoções ou sentimentos. Na esquizoanálise, afetos não são entendidos como emoções subjetivas ou sentimentos expressos em linguagem, mas como intensidades, modulações de potência, forças que aumentam ou diminuem a capacidade de um corpo de ser afetado, ou afetar outros corpos.

Dizendo de outro modo, o afeto é um vetor, não um conteúdo. Escutar os afetos consiste em captar essas variações de intensidades: quando algo hesita, acelera, escapa, se contrai, se expande. Trata-se de sentir o clima do acontecimento, não apenas interpretar o sentido do que se diz.

Em vez de interpretar signos, como se faz comumente na psicanálise freudiana, a esquizoanálise se coloca a cartografar os fluxos, os movimentos dos desejos, das palavras, dos gestos, das intensidades. Escutar os afetos é perceber como esses fluxos se conectam, se bloqueiam ou se desviam.

É como escutar a cidade à noite: não se trata de identificar cada som, mas captar a ambiência, a multiplicidade em processo, que fala algo mais profundo que uma voz isolada. A escuta esquizoanalítica é geográfica, não hermenêutica. Perguntas que envolvem essa escuta são: por onde anda o desejo? O que o movimenta? O que o bloqueia?

Afetos são sinais de devires em curso: devir-criança, devir-animal, devir-mulher, devir-máquina… O terapeuta se atenta aos devires como transformações de modos de existir. Escutar afetos é perceber quando alguém começa a deixar de ser “um eu” e se torna algo "outro" e "distinto" — mais fluido, mais múltiplo, mais rizomático.

Muitas vezes os afetos se expressam num tom de voz, numa pausa, num tropeço na linguagem, numa pausa. Por isso, escutar afetos exige um certo silêncio interno do terapeuta. Trata-se de silenciar o desejo de interpretar e organizar, para ceder um espaço de abertura ao encontro, de modo a escutar o corpo.

Não se trata de "analisar o paciente", mas de entrar em ressonância com ele, quase como uma escuta musical ou coreográfica - a escutar com a sensação, com a respiração, com o campo afetivo que se forma no contato, de modo a compor um espaço para o acontecimento, criar um ambiente propício ao surgimento do novo.

A escuta dos afetos ajuda a mapear onde há vida, onde há morte, onde há potência ou servidão, onde não há caminhos definidos, onde o desejo pode improvisar. Não há “resposta” a um afeto escutado, mas há experimentação, composição, criação. Onde o terapeuta pode propor linhas de fuga, não soluções, co-criando com o analisante novos modos de existir, de desejar, de se conectar ao mundo.

Enfim, escutar afetos na esquizoanálise consiste em acolher as intensidades que atravessam, não para prever o terremoto, mas para dançar com ele. Trata-se de um ato poético, ético e político. A escuta esquizoanalítica é um ato de resistência: que recusa a normalização, a interpretação pronta e a ideia de sujeito fechado. Ela aposta na potência do inacabado, do imprevisível, do porvir.

A esquizoanálise, como ferramenta de leitura, não busca diagnosticar ou corrigir, mas cartografar - mapear territórios de desejo, linhas de fuga, bloqueios e campos de forças. Diante da narrativa de uma pessoa, não estamos lidando com diagnóstico ou apenas com uma história, mas com uma composição intensiva de forças, afetos e territorializações.

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