Liberdade como prática de si

O entendimento de liberdade, em Michel Foucault, contraria as noções tradicionais de liberdade, tanto a "liberdade metafísica" (associada ao livre-arbítrio) quanto a "liberdade política" (associada a direitos e garantias em uma sociedade).

Foucault não pergunta se “somos livres” num sentido absoluto, como se houvesse uma essência metafísica da liberdade. Para ele, o problema não é saber se a liberdade existe como propriedade universal do ser humano, mas compreender como somos historicamente constituídos, restringidos, produzidos e configurados, e o que podemos fazer diante disso.

Sua análise se desloca para pensar as práticas de liberdade, não como algo dado, mas enquanto um campo de práticas possíveis e abertas, que se fazem em condições históricas específicas. Diferente da tradição liberal, que concebe o poder como repressão e a liberdade como ausência de coerção, Foucault entende o poder como produtivo, que cria sujeitos, identidades e modos de vida, e a liberdade como resistência.

A liberdade acontece sempre na tensa relação com as configurações históricas de poder e saber que nos constituem. Não há uma liberdade “pura”, exterior às configurações de poder e saber, o que temos é a possibilidade de intervir nelas, resistir, deslocá-las e reagir a elas. Por isso, ele entende a liberdade como uma prática histórica.

Deste modo, a liberdade está inseparável de um diagnóstico crítico do presente. Trata-se da possibilidade de romper com o que parece acabado e estabelecido, seguindo as “linhas de fragilidade” de nosso tempo, entendendo que aquilo que parece necessário e imutável é, na verdade, construído e contingente — e, portanto, transformável.

"Meu papel – e este é um termo por demais pomposo – consiste em mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidente, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.”(Michel Foucault, em 'Verdade, poder e si')

A liberdade não consiste numa “liberdade de” fazer algo, no sentido de ausência de repressão e controle, mas sobretudo “liberdade para” fazer a si mesmo de outro modo, para experimentar novas formas de existência, para abrir espaços de transformação e resistência nas configurações de saber e poder.

Foucault descreve, em "Vigiar e punir" (1975), como as práticas disciplinares e os dispositivos de normalização configuram corpos e subjetividades, produzindo o que ele chama de “corpos dóceis”, que consiste em identidades fixadas e modos de vida normalizados.

É justamente por conta do poder nunca ser total, há sempre possibilidade de resistência. A liberdade aparece então como uma ação criativa e experimental diante da própria sujeição, num jogo de contracondutas, deslocamentos e invenções. Ela não é exterior ao poder, mas condição e contrapartida de sua ação.

"(...) para Foucault, a liberdade é uma questão de experimentação. Abrir um 'espaço de liberdade concreta' não é descobrir quem podemos ser e então ir até aí; é tentar diferentes possibilidades para as nossas vidas, diferentes "transformações possíveis", ver aonde poderiam levar. Viver livremente é experimentar consigo mesmo, nem sempre sabendo se você está se libertando das forças que o têm moldado, nem tendo certeza dos efeitos da própria experimentação. Trata-se de tentar criar uma vida a partir de um espaço de incerteza."(Todd May, em 'A concepção de liberdade em Foucault')

Em seus últimos cursos e escritos, Foucault passa a conceber a liberdade como “práticas de si” - modos pelos quais o sujeito se relaciona consigo mesmo, compõe modos de vida e se transforma, entendendo a ética como uma estética da existência, onde a liberdade se manifesta em fazer da própria vida uma obra, aberta e em processo, recusando a passividade diante das normas e buscando outras formas de vida.

"Não poderia a vida de todos se transformar em uma obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?"
(Michel Foucault, em 'Sobre a genealogia da ética')

Pensar a liberdade como experimentação entende que ela não garante uma redenção nem salvação. Mas é sempre arriscada, pois ao experimentar novas formas de vida podemos tanto nos libertar de sujeições quanto nos engendrar em novas opressões. Não há garantias, apenas o exercício crítico, sendo a liberdade uma prática incerta, situada e histórica, feita de experimentação constante.

Foucault não pensa a liberdade como um atributo essencial do ser humano nem um direito concedido pelo Estado. Mas como algo histórico - que emerge em meio a condições de poder específicas; relacional - acontece sempre no jogo entre sujeição e resistência; concreta - que se refere a transformações possíveis e não a abstrações; e experimental - um exercício de criação de si e de reinvenção das formas de vida.

"A partir da ideia que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma consequência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte."
(Foucault em 'Ensaios sobre o sujeito e o poder') 

Assim, a liberdade é menos um “estado” ou uma "condição", e mais movimento e uma ação. Não é uma essência que possuímos nem um lugar que alcançamos, mas uma prática que exercemos, arriscada e profundamente criadora.




Referências:
FOUCAULT, Michel. Dois ensaios sobre o sujeito e o poder (1982). In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma viagem filosófica. Paris: Gallimard, 1984.
FOUCAULT, Michel. Verdade, Poder e Si. Em: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV, pp. 777–783.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento. Em: ESCOBAR, C. H..(org.), O Dossier, últimas entrevistas, Taurus, Rio de Janeiro, 1984.
MAY, Todd. A concepção de liberdade em Foucault. Em: TAYLOR, Dianna (org.). Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

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