Michel de Montaigne foi um pensador francês do século XVI, considerado um dos precursores da filosofia moderna da subjetividade. Sua obra "Os Ensaios" (1580) marca uma virada no modo de pensar o ser humano, sem o peso das tradições escolásticas e do humanismo livresco, colocando em primeiro plano a experiência singular de si como um campo de investigação filosófica.
Ao invés de buscar verdades universais e fixas, Montaigne propõe olhar para si próprio, “sou eu mesmo a matéria de meu livro”, explorando seus pensamentos, afetos, contradições e transformações, utilizando esses elementos como matéria de reflexão. Ele inclusive inaugura o ensaio como um gênero literário, escrevendo diversos textos sobre um tema, explorando perspectivas distintas, sem o intuito de alcançar uma conclusão.
"Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeições e minha forma natural de ser hão de se ler (...). Assim, Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro: não é razão para que empregues teu vagar em assunto tão frívolo e vão."
(Montaigne, em 'Ensaios')
Esta forma de escrita tem um caráter experimental, onde o autor apresenta uma temática que permanece inacabada, não necessitando de um método ou uma regularidade, nem mesmo buscando uma conclusão, onde o texto apresenta características próprias do autor, habilita digressões e mudanças de perspectivas, onde é possível seguir uma ideia e experimentar suas possibilidades.
Montaigne não escrevia sobre o universal em abstrato, mas sobre si mesmo, destacando o ordinário, aquilo que parece banal e pouco digno de atenção, tornando-se a matéria de pensamento. É nesse movimento de autoinvestigação, que o autor se coloca como tema, fazendo emergir uma das origens da subjetividade moderna: o sujeito não mais como guardião de verdades gerais, mas como lugar de experiência, atravessado por dúvidas, paixões, humores e contingências.
"Somos todos construídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem."
(Montaigne, em 'Ensaios')
Diferente da filosofia escolástica, que buscava o sólido e o definitivo, Montaigne buscou se reconhecer em suas inconstâncias e variações. O que importa não era encontrar uma verdade última, mas apreender as incertezas, encarando a vida cotidiana tal como esta acontece, atento aquilo que parece conhecido e que por isso mesmo escapa nossa atenção.
Para Montaigne, o sujeito não é uma substância estável, nem um núcleo fixo de identidade. Ao contrário, ele se percebe como algo fluido, mutável, múltiplo e inconstante. Sua máxima — “Que sais-je?”, que pergunta "-O que sei eu?" expressa sua disposição para o questionamento permanente e para a incerteza, onde a subjetividade se observa, se interroga e se aceita em sua condição imperfeita e mutável.
"Em verdade, o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente fundaríamos sobre ele julgamento constante e uniforme."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Contrário ao ideal da filosofia clássica de buscar a essência das coisas, Montaigne se aproxima de uma filosofia da incerteza, do movimento e da experiência. A subjetividade, em sua obra, não é algo dado de antemão, mas algo que se faz e se refaz no exercício contínuo de percepção, escrita e reflexão. É na prática de escrever sobre si que ele experimenta e constitui o próprio sujeito.
Seus ensaios são um espelho de si mesmo, não no sentido de refletir uma imagem fiel e cristalizada, mas no sentido de acompanhar as variações, os humores e as mudanças do próprio ser. O sujeito, para ele, é um ser que se transforma, que se contradiz, que não se fixa em nenhuma definição permanente, antecipando uma concepção moderna de subjetividade como algo processual, instável e aberto.
"Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante, eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem."
(Montaigne, em 'Ensaios')
Sua reflexão é atravessada por uma consciência da finitude, da fragilidade humana e da condição de impermanência. Ao explorar suas próprias fragilidades, medos, desejos e limitações, Montaigne constrói uma filosofia da imanência, onde o conhecimento de si não conduz a uma elevação espiritual ou a uma verdade superior, mas a uma forma mais lúcida, prudente e generosa de estar no mundo.
Ao falar de si, ele não procura apresentar um ideal, mas a vida comum em sua fragilidade e inconstância. Em vez de erigir verdades, expõe dúvidas; em vez de ordenar, acolhe a variação dos humores, das lembranças e das circunstâncias. Ao narrar experiências triviais, reconhece nelas o que o hábito tende a ocultar. A filosofia, para ele, não deve oferecer certezas eternas, mas aceitar as mutações da vida e aprender a conviver com as incertezas.
"Em verdade, o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente fundaríamos sobre ele julgamento constante e uniforme."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Sua filosofia, portanto, se volta para condição humana em sua complexidade, reconhecendo alegrias e dores, sucessos e fracassos, o ordinário e o extraordinário. Entende que não controlamos o fluxo das coisas — “não vamos, somos levados”. Segundo Montainge, viver bem é acolher esse movimento com serenidade, sendo a filosofia uma preparação para a morte, não como negação da vida, mas como aceitação de sua finitude.
Montaigne inaugura, assim, um pensamento da subjetividade: o homem não como portador de verdades universais, mas como ser singular, mutável e mortal, que aprende a conhecer-se ao narrar-se. Em sua escrita fragmentária e pessoal, anuncia o nascimento de um sujeito moderno — não heroico, mas humano em sua vulnerabilidade. O mergulho em si mesmo se torna também uma abertura ao outro, relativizando as próprias crenças e amplificando olhares.
"A cada minuto me parece que escapo de mim."
(Montaigne, em 'Os Ensaios')
Portanto, na filosofia de Montaigne, o sujeito não é uma substância metafísica, mas uma experiência vivida. A subjetividade é entendida como prática — prática de reflexão, de escrita, de escuta de si — um modo singular de se relacionar consigo, com os outros e com a vida.
Referências:
LUDWIG, Carlos R. Subjetividade e autoinvestigação nos Ensaios de Montaigne. In: Revista de Letras, UNESP Online, v. 53, p. 7-20, 2013.
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. Tradução: Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. Montaigne e a reflexão moral no século XVI. In: Revista Olhar, ano 04, nº 7, jan-jun / 2003, pp. 76-85.


