Para uma vida não fascista

Michel Foucault, em seu prefácio ao "O Anti-Édipo" de Deleuze e Guattari, formulou uma pequena ética que chamou de “arte de viver contrária a todas as formas de fascismo”. Esse texto, curto e incisivo, traz uma espécie de manual ético-político contra a captura de nossos corpos, pensamentos e afetos pelo fascismo. Mas o que significa viver de modo não fascista? E por que é um tema tão urgente?

Quando falamos em fascismo, corremos o risco de pensar apenas como um regime histórico – Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, ou mesmo figuras contemporâneas como Bolsonaro no Brasil e Milei na Argentina. Foucault desloca a questão: o fascismo não se reduz a uma estrutura de governo ou a um líder autoritário, ele é um modo de subjetivação, uma forma de desejar o poder que nos oprime.

O fascismo é mais que um regime, mas um modo de vida. Para Foucault, é esse fascismo cotidiano, invisível, que mais nos ameaça: quando aceitamos hierarquias rígidas como naturais, quando cultivamos medo do diferente, quando amamos o poder que nos domina, quando desejamos uma ordem que nos silencia.

É nesse sentido que Bolsonaro, como qualquer outro, é apenas figura de superfície. Trocar de governante sem alterar as relações de poder é como trocar a máscara sem tocar no rosto. O fascismo não é só um “inimigo externo” - ele martela dentro de nós, em nossas condutas, em nossos desejos, em nossas maneiras ser e de nos relacionar.

Para Foucault, o poder não atua apenas como uma censura ou uma repressão. Ele não se limita a proibir, mas também produz. Ele produz sujeitos e discursos, fabricando corpos dóceis, identidades fixas, indivíduos que acreditam ser “naturais” suas formas de existir e de viver. O poder é capilar, microscópico, atravessa instituições, discursos, afetos, desejos.

É por isso que a luta contra o fascismo não pode se restringir à troca de governantes ou ao apelo aos “direitos do indivíduo” — já que o próprio indivíduo é uma produção do poder. O desafio é mais radical: desindividualizar, multiplicar, abrir espaço para outras formas de vida. Foucault nos propõe algumas orientações "Para uma vida não fascista", que não são mandamentos morais, mas convites à experimentação:

  • Desconfiança do uno e do total: libertar a ação política de paranoias unitárias, da busca por um único centro de totalizações acabam sufocando o múltiplo.

  • Proliferação em vez de pirâmide: deixar emergir as práticas, os pensamentos e os desejos por justaposição e disjunção, em rizoma, não como uma árvore hierárquica.

  • Preferir a diferença e o múltiplo: não organizar a vida em torno da ordem, da lei ou da castração, mas investir nas diferenças, nos fluxos e nos agenciamentos móveis.

  • Alegria como força política: a militância não precisa ser triste, a luta contra algo abominável pode ser feita com riso, dança, invenção - a seriedade não é sinônimo de potência.

  • Pensamento e ação como intensificadores: o pensamento não deve legitimar a ação como “verdadeira”, nem a ação política desacreditar o pensamento, ambos se nutrem, multiplicando as possibilidades de intervenção.

  • Desindividualizar: não exigir da política a restauração de "direitos individuais", o indivíduo é um efeito do poder, precisamos romper com esse modelo, nos abrindo a outros modos de vida.

  • Não amar o poder: não cair na armadilha de desejar o poder que nos oprime, o fascismo é uma estética do poder sedutor, resistir é desamar o poder.

Se o fascismo se infiltra no cotidiano, a vida não fascista é uma prática, um exercício constante de atenção e desvio. Trata-se de cultivar modos de vida que escapem à rigidez, à captura, à homogeneização. Em tempos de polarizações, algoritmos que nos vigiam e desejos domesticados, uma vida não fascista se torna mais urgente do que nunca.

Podemos experimentar outros modos de vida, afirmar diferenças sem reduzi-las à identidade, encontrar alegria e invenção na luta e desconfiar das narrativas totalizantes, inclusive as que se dizem libertadoras. Foucault nos convida a transformar a vida em campo de experimentação contra o fascismo, uma tarefa sutil, cotidiana e profundamente revolucionária.

Enfim, "Para uma vida não fascista" não é um guia de vida, mas uma ética da experimentação. Trata-se de resistir ao fascismo que nos habita, à tentação de amar o poder, ao desejo de uniformidade. É buscar a proliferação de outros modos de ser, aceitar o múltiplo, procurar e experimentar novas práticas, afetos e relações.

PARA UMA VIDA NÃO FASCISTA
(Michel Foucault)

Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira:

-Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
-Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
-Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna). Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas;
-Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável;
-Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
-Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação;
-Não caia de amores pelo poder.

Fragmentos do texto 'Para uma vida não fascista', de Michel Foucault, publicado no prefácio da edição norteamericana de 'Anti-édipo', de Deleuze e Guattari, 1977. Tradução por Wanderson Flor do Nascimento.

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