O 'eu' não passa de uma ficção, uma conveniência, uma fantasia que criamos para guiar e conduzir nossa vida, como uma história que nos contamos tão repetidamente, que acabamos acreditando. Há múltiplos elementos que nos coabitam: interesses, disposições, desejos. Somos mais que um “eu” enquanto unidade ou uma identidade: somos múltiplos, diversos, heterogêneos e estranhos até para nós mesmos.
Não há um "eu" escondido a ser encontrado, decifrado ou interpretado, mas multiplicidades a serem experimentadas - deslocamentos, rupturas, movimentos e transformações... Estamos a todo momento transformando e nos diferindo. Não há uma unidade fixa e imutável, somos muitos, temporários e transitórios.
"Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos."
(Michel Foucault, em 'O sujeito e o poder')
O filósofo escocês David Hume foi um grande crítico da ideia de "eu", segundo ele o que temos não são mais que experiências, e elas não nos habilitam a certificar a existência de uma unidade ou permanência. Friedrich Nietzsche também criticou a ideia de sujeito, para ele o "eu" não é uma substância, mas um processo múltiplo, em constante transformação e reinvenção.
Nietzsche problematizou a ideia tradicional de sujeito e identidade, entendendo esses conceitos como construções históricas e metafísicas herdadas da tradição platônica e reforçadas pela filosofia moderna. Segundo ele, a crença num “eu” estável, unificado e contínuo resulta de uma ilusão sustentada por estruturas linguísticas e hábitos de pensamento.
Para ele, não há necessidade de um núcleo substancial por trás do fluxo das experiências e ações. O “eu” não é uma entidade, mas um efeito — uma síntese precária de múltiplas forças, instintos e interpretações. O ser humano é, antes, um campo de forças em conflito, um jogo de vontades de potência múltiplas e heterogêneas.
A ideia de uma identidade fixa, coerente e transparente para si mesma é, para Nietzsche, uma ficção útil, mas enganosa. Segundo ele, tornar-se quem se é não consiste em reencontrar um núcleo perdido, mas afirmar essa multiplicidade sem ilusões de centro.
"Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
O que entendemos por "eu" ou "identidade" não passa de uma narrativa imposta por regimes morais e sociais — que busca fixar e domesticar a pluralidade e a instabilidade da vida. Nietzsche sugere que cada pessoa seja um devir, nunca uma essência. Assim, não há um “eu”, mas um jogo contínuo de máscaras.
Quando tiramos uma máscara e pensamos que nos aproximamos de nosso "verdadeiro eu", aparece outra. Rosa Dias comenta em seu livro 'Nietzsche, vida como obra de arte', que "por trás de cada máscara, há sempre muitas outras máscaras; por trás de cada pele, outras peles" (p.104-105).
Não há um "eu" verdadeiro, encoberto, aguardando nosso desvelamento. Nietzsche entende o corpo como multiplicidade - somos compostos de impulsos, afetos, memórias, forças biológicas e culturais que não se reduzem a um único comando central. Sua crítica abre espaço para uma ética do devir e uma visão trágica da existência.
Trata-se de viver não para conservar uma essência, mas para criar novos modos de si, aceitando a multiplicidade e os conflitos internos como condição vital, não como erro ou desvio a ser corrigido. Somos múltiplos fluxos em movimento, em constantes metamorfoses e experimentações — uma pluralidade sem centro, cuja única unidade é aquela que momentaneamente inventa para si.
Nietzsche contraria a busca de si para a criação de si, para além de bem e mal. Em vez de tentar conhecer um "eu" ou procurar um "verdadeiro eu"? Que tal se desconhecer, navegar em seus descaminhos, para dar vazão aos múltiplos "eus" possíveis? Trata-se de nos abrir as possibilidades de atuar de maneira criativa e plástica sobre nós mesmos.
Contrariando o imperativo Socrático do “conhece-te a ti mesmo”, enraizado numa tendência moral, Nietzsche valoriza o esquecimento de si, seguindo para uma apropriação de si, aberta a transmutação.
Michel Foucault foi outro grande crítico da noção de sujeito, entendendo que esta ideia é uma invenção recente, que surgiu em meados do século XVIII, juntamente com a filosofia do sujeito. Ele entendia que a ideia de sujeito não era uma descoberta, mas uma invenção. O sujeito foi inventado, bem como suas características e disposições.
"Em primeiro lugar, penso efetivamente que não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção de sujeito. Penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade."
(Michel Foucault, 'Uma estética da existência', 1984, em 'Ditos & Escritos Vol. V - Ética, Sexualidade, Política, 291p.)
Foucault abandonou a ideia de uma "teoria do sujeito", que entendia este enquanto substância identificável, para compor uma "analítica da subjetivação", que entende o sujeito a partir de um olhar histórico e geograficamente situado, num tempo e local específico, que se constitui numa ambiguidade entre o submetimento e a resistência.
Por abandonar a teoria do sujeito, ele não buscou alcançar uma "unidade" ou uma "verdade" sobre o sujeito, mas compreender seus distintos modos de se tornar sujeito, em diferentes tempos e espaços, sobretudo como reagia à cada situação e circunstância em que estava inserido. Seu interesse não era entender o que o sujeito é, mas o modo como o sujeito se constitui sujeito.
"A única pessoa que se comporta de maneira sensata é meu alfaiate. Ele tira minhas novas medidas todas vezes que me encontra, enquanto as outras pessoas continuam com as medidas velhas e esperam que eu me encaixe nelas."
(George Bernard Shaw)
O conhecimento de si não é suficiente para nos entender, pois não há um "eu" a ser encontrado, descoberto ou decifrado. Como somos multiplicidades, para perceber a nós mesmos seria necessário nos observar por meio de uma multidão de olhares, levando em consideração nossa história, as configurações de nosso tempo, nossos impulsos e disposições. Mesmo assim só perceberemos alguns elementos que nos compõe.
Segundo Nietzsche, entendemos o mundo a partir de nossos impulsos e necessidades, cada impulso opera com um desejo de controle sobre os outros, buscando impor sua perspectiva. Não há uma origem a se alcançar, as coisas não possuem um fundamento, um princípio ou uma essência a ser revelada, mas acontecem num constante jogo de aproximações, distanciamentos, avaliações e perspectivas.
"Salve-se quem quiser,
perca-se quem puder!"
(Paulo Leminski)
A verdade não é algo acabado ou absoluto, não é uma adequação do intelecto a um fato, mas uma criação, recheada de interesses diversos. Não há um significado único sobre os fatos, pois estes são sempre interpretados por alguma pessoa a partir de um ponto de vista específico, seu contexto, suas intenções e condições no momento.
A "busca" de um "eu" é muito mais uma "armadilha", pois ao fazer isso não encontramos um "eu", acabamos criando um "eu". O conhecimento não "liberta", ele organiza, define, explica e delimita, estabelece configurações e identidades, sendo oposto ao movimento, ao fluxo e da transformação.
"Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo."
(Michel Foucault)
Talvez seja mais interessante e potente se desconhecer do que se conhecer, perder de vista a ideia de que exista um "eu" ou um "você", e simplesmente seguir, num processo que se forma e se transforma, sem necessidade de "identidade" ou "unidade", sendo como for, conforme os interesses e possibilidades momentâneos, reconhecendo as rupturas, os desvios, e tudo o que há de estrangeiro na existência.
Podemos muito bem substituir a ideia de "eu" por intensidades, interesses, disposições e modos de ser. Essa mudança implica numa mudança de olhar sobre o que podemos fazer de nós mesmos. Essa mudança implica numa mudança de olhar sobre o que podemos fazer de nós mesmos. Se for para ser algo, que seja um passageiro ou um andarilho, e nada mais que isso...
perca um "eu" a cada dia..
não procure saber quem você é
a identidade é uma paralização,
mais vale experimentar
lugares, atividades e relações
somos experiências,
momentos, mutantes..
não espere se "encontrar"
para fazer algo
estamos a todo momento
fazendo algo..
o "eu" não passa
de uma ficção
melhor que encontrar um "eu"
é experimentar um "eu"
inventar outros "eus"
e trocar quando puder
o "eu" não é uma unidade,
mas múltiplo e transitório..
não queira um "eu"
prefira passagens e
experiências