Ser como ficção na Filosofia

A questão sobre o "ser" é um dos temas mais destacados na história da filosofia ocidental, sobretudo na tradição metafísica e na ontologia - que significa o estudo do ser. Desde Heráclito, que entendia o ser como um fluxo impermanente, e Parmênides, que o concebia como absoluto e imutável, passando por Platão, Aristóteles, Descartes, entre outros, seguindo até os filósofos contemporâneos.

O entendimento mais comumente estabelecido de “ser” na filosofia é de uma realidade essencial, imutável e permanente, contrário a aparência, as mudanças e a impermanência. Este entendimento se consolidou hegemonicamente na tradição do pensamento ocidental a partir de Parmênides, mantido por muitos dos filósofos seguintes, permanecendo dominante na filosofia.

Porém, há outra perspectiva, mais complexa e diferenciada, que encara o “ser” não como essência, identidade ou constância, mas como uma convenção, uma ficção que organiza o mundo da experiência e da linguagem. Nesta tendência podemos incluir Heráclito, Górgias, Hume, Foucault e Nietzsche, que talvez tenha sido o mais radical neste aspecto.

Na Grécia Antiga, por volta do século VI a.C., Heráclito de Éfeso reconheceu a impermanência das coisas e dos seres, apreendendo a realidade em sua mutabilidade constante. Segundo ele, estamos a todo momento nos transformando, o ser não é mais que o "não-ser", constituído de múltiplas oposições. Tudo flui em constante transformação e contradição, a permanência não passa de uma suposição.

"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos."
(Heráclito de Éfeso)

Durante o século V a.C., o sofista Górgias trouxe uma provocação em seu "Tratado sobre o Não-Ser". Segundo ele, nada existe; se existisse, não poderia ser conhecido; se fosse conhecido, não poderia ser comunicado. Se o “ser” não pode existir, nem ser conhecido ou comunicado, resta apenas um jogo de linguagem. O ser, nesse horizonte, não passa de uma ficção retórica.

Contrário a estes, Platão identificou o ser com o eterno, imutável e inteligível, em contraste com o devir sensível e mutável. Em sua 'Teoria das Ideias', o que percebemos por meio dos sentidos é ilusório (o mundo material em constante mudança), a verdade estaria no mundo das ideias e das essências, acessível apenas por meio da razão. Este modo de pensar orientou grande parte do pensamento ocidental.

Séculos depois, na Modernidade, a suspeita reaparece, colocando o sujeito e o ser novamente em questão. O filósofo empirista escocês David Hume, no século XVIII, entendia que o “eu” não era uma substância, muito menos uma essência, mas apenas um feixe de percepções em constante variação. O que entendemos por "eu", portanto, não passava de uma ficção da imaginação.

Ainda no século XVIII, Immanuel Kant, ao estabelecer os limites da razão, entendeu que o “ser em si” (a coisa-em-si) era impossível de se conhecer. Segundo ele, o que chamamos de “ser” é apenas um fenômeno moldado por nossas formas a priori de conhecimento. Embora não entenda o ser como ficção, ele sugeriu que o ser, como imaginado pela metafísica, escapa o alcance do entendimento humano.

Seguindo adiante, Friedrich Nietzsche, no século XIX, entendeu que o “ser” era apenas um hábito de linguagem e uma convenção da metafísica. A linguagem, ao estabelecer substantivos e predicados, nos faz crer na existência de um sujeito e uma identidade enquanto características permanentes. Porém, a realidade não é a permanência, mas transformação e fluxo, que envolve contradições e paradoxos.

Para Nietzsche, o ser é uma ficção útil, que oferece uma estabilidade ao pensamento e à vida social, mas ao custo de negar o movimento incessante da vida. Segundo ele, o que entendemos por "ser" não passa de um ideal, onde congelamos o devir em conceitos fixos para nos protegermos do caos. Ao fazer isso, nos afastamos da própria potência da existência em sua característica fluida e transitória.

No século XX, a questão do ser aparece em outras configurações. Martin Heidegger acusa a tradição metafísica de ter reduzido o "ser" a um ente, propondo recuperar o “sentido do ser” esquecido pela filosofia ocidental. Michel Foucault compreende que categorias como “sujeito” e “ser humano” são construções históricas, resultante de práticas discursivas e relações de poder.

O filósofo neokantiano Hans Vaihinger entendia que pensamos orientados por ficções úteis, como os conceitos de "ser", "causalidade" ou "substância", que não correspondem literalmente à realidade, mas funcionam de maneira pragmática. Richard Rorty entendia que os conceitos filosóficos, incluindo o de "ser", são meras ferramentas linguísticas, não representações verdadeiras do real, mas dispositivos de conversação.

Entender o “ser” como uma ficção não quer dizer que ele não exista, que seja um erro ou tenha de ser descartado. Para muitos filósofos, a ficção é constitutiva do modo como pensamos, agimos e habitamos o mundo. Podemos compreender o ser como uma narrativa — uma maneira de organizar a vida e as relações, dando sentido e forma ao que constantemente nos escapa.

Considerando os pensadores mencionados, Nietzsche foi quem mais denunciou o caráter fictício do ser, revelando como se tornou um artifício para negar o fluxo da vida. Pensar o ser como ficção não se trata de um ceticismo vazio, mas uma forma de compreender que nossas categorias não são espelhos da realidade, e sim invenções humanas, jogos de linguagem, construções históricas e ficções.

Nietzsche propõe um olhar crítico sobre a noção de sujeito, sobre a ideia de consciência e de "eu". Segundo ele, o "eu" não se trata de uma substância, mas um processo múltiplo, multifacetado e em constante transformação; a ideia de um "eu" ou de "ser" não passa de uma fábula. Não há um "eu" verdadeiro, encoberto e essencial, aguardando nosso desvelamento.

"Nietzsche não crê que haja algum Eu unitário e preexistente que possa ser um puro e simples objeto de conhecimento, como sugere o dito grego 'conheça a si mesmo'. Pelo contrário, Nietzsche proclama 'queira um Eu': nós temos de tornarmo-nos quem nós somos através da autocriação ou criação de si." (Woodward, em 'Nietzscheanismo')

Para Nietzsche, o que entendemos por "eu" não é mais que uma ficção, um simples vício de linguagem, onde atribuímos uma unidade sobre algo que é múltiplo, transitório, contraditório, complexo e provisório. Apesar disso, as ficções fazem parte da vida, o caráter ficcional do pensamento talvez seja uma condição do próprio pensar (ou não?).

Deste modo, o conhecimento de si não é suficiente para nos entender, pois não há um "eu" a ser decifrado ou encontrado. Como somos multiplicidades, seria necessário nos observar por meio de uma multidão de olhares, considerando nossa história, as configurações de nosso tempo, as diversas experiências, e mesmo assim perceberemos apenas instantes e fragmentos de nosso fluir.


Referências:
ABRÃO, Bernadette. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
WOODWARD, Ashley. Nietzscheanismo. Petrópolis: Vozes, 2017.

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