O valor do esquecimento em Nietzsche

Caminhante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich, 1818

O esquecimento ocupa um lugar de importância na filosofia de Friedrich Nietzsche. Longe de ser entendido como uma deficiência ou fraqueza, é valorizado como uma força criadora, vital para uma grande saúde. Em sua "Segunda Consideração Intempestiva", explorou a relação entre memória, história e esquecimento, entendendo o esquecimento como fundamental para viver e criar.

Sua perspectiva que contraria o modo como hoje entendemos o esquecimento e a importância que atribuímos à memória, que nos torna cada vez mais sobrecarregados e exaustos. Diferente desta noção vigente, Nietzsche encarava o esquecimento como uma força ativa e transformadora, que nos permite lidar com a vida sem sermos paralisados pelo peso do passado e da memória.

Segundo o filósofo, vivemos de maneira mais intensa quando esquecemos e deixamos as coisas passarem. Quem é incapaz de esquecer está condenado a viver preso ao passado, ruminando continuamente os mesmos hábitos, incapaz de criar outras formas de vida. O esquecimento, nesse sentido, não é negligência ou ignorância, mas uma disposição vital, que possibilita outros modos de vida, deixando de lado ressentimentos e abrindo espaço para novas experiências.

"Toda ação exige esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não somente a luz, mas também a escuridão. (...) É, portanto, possível viver, e mesmo ser feliz, quase sem qualquer lembrança, como o demonstra o animal; mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento."
(Nietzsche, em 'Considerações Intempestivas II')

Contrariando o esquecimento, vivemos atualmente a exaltação da memória, que se torna muitas vezes sufocante, pois nos prende a uma repetição do passado, impossibilitando o movimento criativo e transformador do esquecimento. Nietzsche nos atenta para o perigo de uma cultura obcecada por recordar, onde a lembrança constante impede a criação de outros modos de vida.

Para superar os valores herdados pela tradição e criar novos valores precisamos de um certo "desprendimento" daquilo que já foi. Esse desprendimento é facilitado por meio do esquecimento, que age como uma espécie de "espaço vazio", que permite que algo novo possa emergir. Nietzsche associa o esquecimento ao impulso dionisíaco, que celebra a vida em sua transitoriedade e fluidez.

"Não quero travar uma guerra contra o feio. Não quero reclamar, não quero nem mesmo reclamar dos que reclamam. Desviar o olhar deles, será minha única negação! E, abrangendo tudo, em algum momento ainda quero ser apenas alguém que sempre diz sim!"
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência')

Esquecer é, portanto, uma maneira de deixar as coisas passarem e se transformarem, dizendo "sim" ao presente, sem as amarras do que já passou. Na atualidade, vivemos num mundo que amplifica a memória: as redes sociais, os arquivos digitais e os algoritmos garantem que nada seja realmente esquecido. Essa memória incessante pode levar ao esgotamento e sobrecarga emocional.

A memória retoma sempre as mesmas imagens, ela conserva uma situação passada por um longo tempo, impedindo a mudança, a novidade e a diferença. Já o esquecimento deixa seguir, permite que novas coisas apareçam e aconteçam. Trata-se de uma força criativa, que destrói para criar, diferente da memória, que é passiva. Ao deixar o passado para trás, o esquecimento privilegia uma postura ativa perante a vida, libertando a memória do ressentimento.

Podemos experienciar o esquecimento de diversas maneiras, seja desapegando de narrativas antigas, reconhecendo nossa identidade como um fluxo em transformação, nos libertando de papéis que já não nos servem. Não se trata de apagar o passado, mas priorizar o presente, focando no momento atual ao invés de ruminar o passado. Inclusive, podemos escolher o que lembrar, selecionar memórias que nos são saudáveis, deixando de lado as que aprisionam. É preciso esquecer para criar.

"O criador sabe esquecer, não leva muito a sério seus contratempos e malfeitos; mas a reflexão de Nietzsche não para por aí. O criador não sabe apenas esquecer: sabe também recordar a tempo. É necessário ter duas visões das coisas: a histórica e a não histórica. Todo ato, para ser criado, exige o esquecimento: é impossível criar-viver sem esquecer. Do mesmo modo, todo ato criador exige a recordação: é impossível criar-viver sem relembrar. O criador não renega a tradição; pelo contrário, retoma-a para redimensioná-la. A faculdade ativa do esquecimento é capaz de assimilar o passado, transformá-lo e transfigurá-lo."
(Rosa Dias, em 'Nietzsche, vida como obra de arte')

O esquecimento, na visão de Nietzsche, é uma força criativa e libertadora, enquanto que a memória é um lugar da consciência, da moralidade, da permanência e da conservação. O esquecimento abre um espaço para a mudança e a criação. Nosso tempo atual, marcado pela persistência da memória, o esquecimento se torna uma disposição subversiva. É esquecendo que podemos dizer "sim" à vida — não como foi, mas como está sendo e pode se tornar.


Referências:
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações Intempestivas II: Sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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