Experiência e discurso sobre a loucura

Pretendo explorar neste breve ensaio a distinção entre a loucura enquanto experiência e a loucura enquanto discurso. Essa diferença não é apenas de termos, mas de percepção, lugar e vivência. A experiência da loucura acontece no corpo, seja numa sensação diferenciada como no sofrimento intenso, atravessada por medo, angústia, confusão, deslocamento de sentido, ruptura identitária ou reinvenção de si.

Uma coisa é a experiência da loucura e outra é o discurso sobre ela, que surge depois e não durante. O discurso organiza, nomeia, classifica, dimensiona e estrutura a experiência da loucura numa categoria objetiva e analisável, transformando a experiência em algo mensurável. Ao fazer isso, produz uma substituição silenciosa, onde o que era vivenciado como experiência existencial passa a ser percebido como entidade clínica.

De acordo com Michel Foucault, a loucura não é resultado de uma descoberta, mas foi produzida como objeto específico de saber e de intervenção sobre o sujeito. O que se constituiu na psiquiatria e psicologia não foi apenas um conhecimento mais preciso sobre o sofrimento psíquico, mas um novo discurso e uma nova disposição para com a loucura e o louco, um novo modelo de silenciar a loucura, separando razão de desrazão, normalidade de desvio, funcionalidade de improdutividade.

O discurso médico-psiquiátrico não surgiu para cuidar, mas principalmente para ordenar. Ele se articula com as instituições, com as normas sociais e as exigências econômicas. No mundo contemporâneo e no contexto do capitalismo neoliberal, a loucura passou a ser percebida como algo a ser diagnosticado, ajustado e neutralizado. O foco deixa de ser a experiência vivida, passando a ser a adequação do sujeito a um modelo de vida "adequado".

Nesse contexto, "curar" geralmente significa devolver o indivíduo ao seu funcionamento na engenharia social em suas exigências de desempenho, produtividade e moralidade. As questões na clínica raramente envolvem se esse modelo vida faz sentido ou é saudável para o indivíduo singularmente. No lugar destas questões, o que se pergunta é se a vida é funcional ao que lhe é socialmente esperado.

Reduzir a loucura a um defeito interno do indivíduo é um empobrecimento do entendimento de sua emergência histórica e social. As experiências entendidas como "loucura" podem ser compreendidas como respostas extremas a condições igualmente extremas, tais como violência simbólica, precariedade afetiva, exigências de desempenho contínuo, falta de trabalho e condições mínimas de vida, esgotamento subjetivo, entre outras.

O capitalismo neoliberal se ocupa da loucura como se ela fosse a causa do problema, sem perceber ela enquanto efeito de condições específicas de vida, como uma resposta a um modo de vida que já não se sustenta. A clínica voltada para o diagnóstico não pergunta sobre o que acontece na vida, mas o que há de errado com um indivíduo. Ao invés de olhar para a loucura a partir do campo da existência, a observa enquanto entidade diagnóstica, instrumento de ajustamento moral e de gestão de si.

Podemos olhar para a loucura de outro modo, para sua experiência e vivência, inclusive as mudanças que ela evoca em cada pessoa, ao invés de apenas mensurar suas categorias. Há experiências de colapso, mas também de ruptura, momentos onde a identidade anterior implode, pois já se tornou insustentável e insuportável. Aqui, a loucura deixa de ser patologia e passa a ser acontecimento, ela deixa de ser "falha" e passa a ser percebida como resposta.

Nem toda desorganização é regressão, mas processos de transformação que ainda não possuem uma forma definida. O filósofo francês Gilles Deleuze entendia que alguns estados entendidos por patológicos são, na realidade, tentativas falhas de criação de novos modos de vida. Seu problema não é o excesso de intensidade, mas talvez a ausência de condições para que essa intensidade encontre vias de expressão e composição.

A loucura, nesse sentido, pode atuar como uma recusa radical a continuar vivendo segundo as coordenadas que produzem sofrimentos constantes. Trata-se de reconhecer que há nela uma dimensão crítica sobre a própria vida e a organização da sociedade, que caminha entre o colapso e metamorfose. Nem sempre o doente é aquele que falha, por vezes é aquele que não consegue mais mentir para si mesmo.

"Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante."
(Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra)

Enlouquecer não é um acidente exterior à existência, mas uma de suas possibilidades. Tal como sofrer, amar, perder e falhar, a loucura faz parte da condição humana diante e aparece de maneira mais intensa em circunstâncias específicas. A tentativa moderna de erradicar a loucura, como se fosse um erro, ignora que a realidade de que a vida não é estável, coerente ou meramente racional, mas caótica, confusa e complexa.

Pensar a loucura enquanto uma dimensão da existência não significa negar sua necessidade de cuidado e acompanhamento, mas deslocar sua disposição ética. O cuidado deixa de ser entendido como tratamento e correção, passando a ser um acompanhamento respeitoso aos distintos modos de existir e reagir ao mundo. As disposições para com a loucura deixam de visar exclusivamente a normalização, para sustentar a complexidade da existência e do mundo.

O que importa não é "tratar sintomas", mas escutar e acompanhar experiências e deslocamentos. Não consiste em ajustar sujeitos, mas repensar o modo como vivemos, sofremos e enlouquecemos, em relação direta com o tempo, o contexto e o mundo.

Quando o diagnóstico se torna a principal leitura sobre o sofrimento emocional ou a loucura, a narrativa singular é substituída por categorias gerais, a experiência distinta e diferenciada é reduzida a uma leitura clínica e a critérios classificatórios. O sujeito passa a se reconhecer mais pelo rótulo do que pela história que está vivendo.

Isso não significa abandonar todo saber técnico, mas recusar sua soberania absoluta. O discurso psi, quando não é atravessado por uma escuta cuidadosa, corre o risco de produzir exatamente aquilo pretende evitar. Talvez o problema não seja que as pessoas enlouqueçam, mas que estejam vivendo em condições que exigem uma aceitação permanente e um silenciamento diante do insuportável.

Pensar a loucura fora do paradigma exclusivamente médico não é negar o sofrimento, mas levar essa experiência mais a sério. É recusar a pressa em corrigir aquilo que ainda não foi compreendido. É sustentar a loucura como pergunta, e não apenas como resposta técnica. Enfim, trata-se de uma ética da escuta e da disposição, entendendo que, em alguns momentos, a loucura seja a forma mais honesta que uma vida encontra para dizer que não suporta mais. Escutar isso pode ser mais transformador do que oferecer um diagnóstico e silenciar o sintoma.

Referências bibliográficas:

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 29. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011.
HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: a dor hoje. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SZASZ, Thomas. O mito da doença mental. Tradução de Maria Thereza Costa Albuquerque. São Paulo: Martins Fontes, 1974.

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