A vida performática em crise

Vivemos sob um novo regime de apropriação da subjetividade, que se direciona principalmente sobre nossa mente e emoções. O capitalismo neoliberal já não se contenta em explorar o corpo e o tempo, agora ele captura as emoções. Uma nova gestão das emoções transforma a vida em performance e o "eu" em produto.

Não se trata mais apenas da fabricação de produtos, mas da produção de estados emocionais. O valor de uso das coisas foi substituído pelo valor afetivo. Não compramos mais um objeto, mas o sentimento que ele promete nos provocar. Estamos sob o império da emoção, onde o consumo nunca termina, apenas muda sua direção.

“Hoje, em última análise, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. Emoções se desdobram para além do seu valor de uso. Assim, inaugura-se um novo e infinito campo de consumo.”
(Byung-Chul Han, em Psicopolítica)

Nossas emoções são ideais para essa nova lógica de mercado, por serem breves, dinâmicas e performáticas. Enquanto sentimentos como amor, angústia ou esperança são mais duradouros e difíceis de manipular; as emoções como o medo, a euforia ou o entusiasmo são fugazes, fáceis de domesticar e direcionar.

Tudo se torna performático neste novo contexto, tanto o trabalho quanto o lazer, a alimentação e as relações. Vivemos para sentir, e sentimos para mostrar. O importante não é a vivência ou o encontro, mas o modo como registramos em fotos e vídeos, que logo se tornam conteúdos para serem compartilhados em redes sociais.

A vida precisa ser instagramável, não nos interessa mais ter experiências, mas compartilhar momentos sem necessariamente vivenciar, fazer coisas para nos mostrar fazendo. Até mesmo os lugares que frequentamos para passeio e convivência modificaram sua arquitetura, incluindo espaços para fotografar e marcar nas redes sociais.

Passamos da alienação da consciência para a disciplinarização dos corpos, e da disciplinarização para um novo momento de captura de nossa mente e emoções. Hoje as emoções são usadas como mecanismos para o aumento de produtividade, otimização e desempenho. O neoliberalismo é o novo capitalismo da emoção.

Essa engrenagem de mercado que se apodera das emoções faz com que a emoção seja associada à sensação de liberdade, para que não se pareça com uma forma de controle. Ser livre, hoje, significa “deixar as emoções correrem soltas”, mas desde que sejam produtivas, positivas e inspiradoras.

A tristeza, o tédio ou a lentidão são tolerados apenas se forem transformados em conteúdo, aprendizado ou superação. A antiga disciplina dos corpos cedeu lugar ao psicopoder, o controle das emoções. O capitalismo neoliberal configura nossa subjetividade e a transforma em desempenho.

O gerente, o coach e o palestrante motivacional são os novos sacerdotes de nosso tempo. É preciso ser resiliente, empático e disposto. O sujeito neoliberal é convocado a se autogerir afetivamente. Qualquer sofrimento é logo percebido como uma falha no desempenho emocional. Tudo o que escapa à lógica da produtividade é entendido como obstáculo interno a ser superado.

Para tornar essa captura mais sutil, o capitalismo se apropriou do jogo. O trabalho foi "gamificado", com pontos, metas, recompensas, feedbacks instantâneos, tudo para tornar a produtividade mais envolvente e mais emocional. O trabalhador se tornou um jogador competitivo, autônomo, emocionalmente engajado. E o jogo nunca termina, e o prêmio é sempre trabalhar um pouco mais.

“O jogador com suas emoções está muito mais envolvido do que um trabalhador meramente funcional ou que atua apenas no nível racional.”
(Byung-Chul Han, em Psicopolítica)

Vivemos sob uma ditadura da emoção, não nos interessam mais as atividades ou relações, mas as emoções que elas nos provocam. Estamos sempre nos refazendo e nos ajustando. A regra é ser flexível e adaptável às necessidades e variações do mercado. O imperativo atual nos exige uma disposição emocional permanente de trabalhar sob pressão, ser resiliente, não perder o foco e as metas.

O antigo gerenciamento do comportamento incluiu agora um novo gerenciamento das emoções. Fomos inseridos num sistema de recompensas, tendo como foco aumentar nosso desempenho e rendimento a todo custo. Fazemos a vida parecer um jogo interminável, estamos sempre passando de fases e coletando mais pontos.

Nem o tempo livre escapa, pois qualquer forma de descanso é recodificada como “autocuidado” e "ócio criativo" e o lazer se tornam um “investimento pessoal”. Tudo se transforma em ferramenta de desempenho: dormir bem, comer bem, praticar hobbies e meditar. Até mesmo o prazer é colonizado em favor da produtividade.

“O consumo excessivo é uma falta de liberdade.”
(Byung-Chul Han, em Psicopoder)

O cuidado de si, que antes era usado como um gesto de atenção e de pausa para si mesmo, para tomar contato com suas necessidades, se tornou uma nova forma de autocontrole e autocobrança. Cuidar de si virou mais uma tarefa na agenda. A vida inteira se converteu num projeto, o eu se transformou em empresa, o afeto em capital.

Atividades casuais como cozinhar, tocar violão e arrumar a casa também são reaproveitadas pela lógica neoliberal. O prazer vira profissão, o talento vira produto, o tempo livre é usado como investimento. Nada escapa à lógica da utilidade. O sujeito acredita estar se realizando, quando apenas se gerencia cada vez mais.

No fundo, o capitalismo neoliberal não quer que sejamos livres, mas rentáveis. Ele substitui o amor pela “paixão produtiva”, a introspecção pela “inteligência emocional”, a liberdade pela “flexibilidade de mercado”. O sentir é transformado numa ferramenta permanente de gestão de si.

Nesse contexto, talvez uma verdadeira liberdade seja ocupar um lugar onde o capitalismo neoliberal não consegue operar, a inutilidade. O gesto sem propósito, no tempo sem meta, a emoção que não precisa ser fotografada ou publicada. Viver sem finalidade é também viver sem vigilância e sem controle.

Ser inútil, tal como as crianças que brincam sem saber por quê, como quem canta no chuveiro para ninguém ouvir. Talvez assim possamos reinventar o espaço do sentir, como um espaço sem finalidade, onde a vida não precisa ser justificada pelo desempenho e produção, mas por ela mesma.

"O mais alto dos ideais é não ter ideal algum. Isso nos põe em consonância com a natureza quanto à sua maneira de funcionar."
(John Cage, em Silêncio)

Foucault entendia a liberdade enquanto experimentação, não uma descoberta de uma essência. Segundo ele, viver livremente é experimentar distintos modos de existir, abrir espaços de incerteza, encontrar brechas na engrenagem do controle.

No meio de uma permanente vigilância de nós sobre nós mesmos, talvez a resistência mais radical seja simplesmente permitir o acontecimento, um afeto que não gera lucro, um instante que não vira conteúdo, um silêncio que não precisa ser explicado.

"(...) para Foucault, a liberdade é uma questão de experimentação. Abrir um 'espaço de liberdade concreta' não é descobrir quem podemos ser e então ir até aí; é tentar diferentes possibilidades para as nossas vidas, diferentes 'transformações possíveis', ver aonde poderiam levar. Viver livremente é experimentar consigo mesmo, nem sempre sabendo se você está se libertando das forças que o têm moldado, nem tendo certeza dos efeitos da própria experimentação. Trata-se de tentar criar uma vida a partir de um espaço de incerteza."
(Dianna Taylor, em Michel Foucault: conceitos fundamentais)

Portanto, uma subversão possível talvez seja justamente fazer algo que não tenha nenhuma serventia prática ou econômica, como sentir sem ser produtivo, viver sem precisar provar. Ser, enfim, inútil e idiota e, portanto, livre.


Referências:
CAGE, John. Silêncio. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyné, 2020.
TAYLOR, Dianna (org.). Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

Romper com Moralismos

Inspirado em Nietzsche, este ebook é um convite para rir do moralismo, abrir espaços de liberdade e compor a vida como obra de arte. Para libertar-se das culpas herdadas, de julgamentos que diminuem e regras que seguimos sem questionar...