Terapia inspirada em Foucault

A noção de “terapia” geralmente nos remete à psicologia clínica ou à medicina, enquanto um campo de tratamento de sintomas, doenças ou disfunções. Porém, inspirado em Michel Foucault, vamos por outro caminho, para uma terapia que não se restringe à cura ou normalização, mas que se abre como uma prática crítica, um exercício de liberdade e experimentação de outros modos de vida.

Uma terapêutica inspirada em Foucault não buscaria uma essência interior ou uma verdade psicológica a ser desvelada, mas se fundamenta na análise das forças históricas, sociais, culturais e políticas que atravessam os sujeitos, apostando na possibilidade de compor novas maneiras de existir, valorizando o cuidado de si, a crítica e a invenção de novas formas de viver.

Foucault (1984) nos lembra que “não é a descoberta de nós mesmos, mas a recusa de sermos o que somos, que constitui o ponto de partida do cuidado de si”. Partindo dessa perspectiva, uma terapêutica foucaultiana não visaria restituir o sujeito a um estado originário de saúde ou autenticidade, mas instaurar práticas de descontinuidade, de resistência e de invenção de si.

Nessa proposta, a disposição terapêutica não seria de um consultório estruturado como espaço clínico convencional, mas um campo de experimentação crítica. O setting poderia assumir formas flexíveis, como encontros em grupo, atendimentos em distintos ambientes, oficinas coletivas, caminhadas, escrita criativa, sempre articulando análise e reflexão, problematizando a vida.

"Meu papel – e este é um termo por demais pomposo – consiste em mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidente, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.”
(Michel Foucault, em 'Verdade, poder e si')

O espaço terapêutico funcionaria como um laboratório ético-político, onde o sujeito seria convidado a colocar em análise não apenas seus afetos e experiências pessoais, mas principalmente as condições históricas que os tornaram possíveis. Assim, o que está em jogo não é apenas a interioridade, mas a trama social em que cada sujeito está inserido e que o constitui.

Para Foucault, a prática filosófica é um exercício de “ontologia do presente”, que busca compreender como nos tornamos o que somos e como podemos nos transformar. Essa disposição se distingue da psicologia ou da psicanálise centradas na interpretação, pois não busca interpretar o inconsciente ou diagnosticar uma patologia, mas abrir a possibilidade de se pensar de outro modo.

Contrário a uma técnica de correção, essa terapêutica seria uma prática de libertação. Como afirma Foucault (1982), “a crítica é a arte da não sujeição voluntária”. A terapia foucaultiana, nesse sentido, seria um espaço de crítica ativa, que possibilita ao sujeito reconhecer os modos pelos quais é governado (discursos médicos, jurídicos, morais, familiares, entre outros) e a ensaiar desvios e rompimentos.

O terapeuta não ocuparia a posição de detentor de um saber, que decifra ou corrige o sujeito, mas acompanharia a pessoa, promovendo reflexões e deslocamentos. Sua prática não interpreta a "verdade" do sujeito, mas ajuda a criar condições para que se perceba as forças que o atravessam e encontre meios de reorganizar sua vida, sem impor normas de vida, ampliando as possibilidades de experimentação.

Este atendimento poderia acontecer em movimentos, onde o terapeuta convida a pessoa a descrever uma situação, não como problema individual, mas como um campo de forças. No diálogo, busca-se compreender como essa experiência foi produzida historicamente, analisando como o sujeito participa, de modo ativo ou passivo de suas formas de sujeição, e quais as alternativas possíveis para resistir.

A terapia não se encerraria na análise, mas numa prática de pensar mudanças de rotina, novos rituais cotidianos, modos de deslocar o corpo e o pensamento. O processo continua como um movimento constante, envolvendo pensar, resistir e inventar. Isso faz da terapêutica não um caminho de correção, mas de uma "estética da existência", uma possibilidade de criar-se como obra de arte.

"A partir da ideia que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma consequência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte."
(Michel Foucault, em 'Sobre a genealogia da ética')

Uma terapêutica inspirada em Michel Foucault é menos uma técnica clínica e mais uma prática ética e política, que articula crítica, cuidado de si e invenção de novos modos de vida. O terapeuta não interpreta nem conduz, mas acompanha e convoca à experimentação. O atendimento não se limita à escuta, mas se abre como campo de pensamento, deslocamentos e resistências.

Trata-se, enfim, de uma disposição e uma prática bem distintas da psicologia convencional - não para "curar" nem "normalizar", mas cuidar para transformar. Não se trata de retornar a uma essência ou uma verdade, mas inventar-se e transformar-se em meio às forças do presente.


Referências:
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Em: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1982].
FOUCAULT, Michel. O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento. Em: FOUCAULT, Michel. O dossiê: Michel Foucault – últimas entrevistas. Rio de Janeiro: Graal, 1984.


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